12.2.20

Duas vitórias que são derrotas e uma derrota que logo se vê



«O Governo averbou duas saborosas vitórias no debate desde Orçamento. A primeira é a mais notória: habituou a opinião pública à ideia de que não se pode conceber política orçamental que não seja pautada por um défice zero ou, melhor ainda, por um glorioso superávite. Mesmo que por vezes haja nisto algum entusiasmo pícaro, como se o feito de que Centeno se gabará para todo o sempre fosse uma espécie de golo de Éder, essa regra é apresentada como a obediência a uma doutrina de fé, ou até como um encantamento mágico.

Como se verifica pelas sondagens, uma confortável maioria aplaude o resultado, a fé, a magia e tudo o mais. O que, desta arte, o Governo está a afirmar, seja por convicção recém adquirida, mas certamente firme como um penedo, seja por conveniência face a uma direita atormentada com a colonização do seu sonho pelo PS, é que em nada importa que os juros que a finança internacional cobra pelas emissões de dívida soberana nacional sejam negativos ou positivos, que a vida será sempre para atarrachar as contas.

O problema é que esta vitória é uma derrota. Ao proibir-se uma política orçamental expansionista, o Governo abdica, em nome do curtoprazismo, de poder usar a folga que é dada pelos juros negativos para remendar as infraestruturas ou para acorrer a incêndios nos serviços públicos, aceitando a lógica imperativa de uma eterna restrição ou, como dizia o ministro, repetindo uma frase de triste memória, que não podemos viver acima das nossas possibilidades (o que daria azo a vastas comparações entre as possibilidades de quem fica demissionável por 150 milhões de IVA, ao mesmo tempo que conspira para dar 1400 milhões ao Novo Banco). Tudo seria simples jogo ideológico se não tivesse consequências. E tem. A estratégia do superávite em tempo de juros negativos quer simplesmente dizer que o governo prefere a renda financeira à constituição do Estado social.

A segunda vitória é igualmente nutrida. É a fabricação de um senso comum, ou pelo menos a banalização da expressão entre comentadores e jornalistas, que chama a tudo o que incomode o Governo uma “coligação negativa”. Se for para rejeitar uma proposta do Governo, é coligação negativa. Se, em contrapartida, for uma votação do Governo com a direita em prol do que quer que seja, é uma “coligação positiva”. Se for para aprovar uma proposta concreta dos partidos que não o do Governo, é fatalmente coligação negativa. A dita cuja só é definida por um critério, o da conveniência do Governo: se ele não gosta, é negativa; se ele aplaude, é a vida normal.

Reconheço que é de mestre. Colocar uma classe profissional com tanta visibilidade, os jornalistas, a reproduzirem este moralismo censório – como é que vossa excelência ousa fazer uma coligação negativa contra os nossos estimados governantes? - e a trivializarem as palavras que naturalizam a existência de um lado respeitável, o Governo, face a outro que seria o das trocas e baldrocas, é um monumento ao engenho. Assim se industrializa o seguidismo e a subserviência, repetidos vezes sem conta em telejornais e artigos, como se a expressão condenatória fosse tão evidente como dar os bons dias.

O problema, mais uma vez, é que há uma derrota escondida nesta vitória. É que ela ilude, criando triunfalismo escusado. Os spin doctors do Governo esfregam as mãos, acham que submeteram a imprensa e dão por certo que esta vai sempre repetir o refrão. Mas tudo o que é exagerado tem um preço. Alguém verificará que, das propostas orçamentais do PSD que foram aprovadas, 37,5% o foram com os votos do PS; a mesma percentagem para o CDS. Serão coligações negativas? E que as centenas de propostas do Bloco e do PCP que foram recusadas tiveram pela frente quase sempre uma qualificadíssima maioria do PS e PSD. Coligações negativas? Assim, ao repetir-se dizendo tudo e o seu contrário, a expressão gasta-se. O triunfo tem inflacionado o seu uso e, se um dia quis dizer alguma coisa, perde nessas repetições o seu cunho assustador. Se tudo o que amofina S. Bento é coligação negativa, afinal que importa a zanga? Das 136 propostas dos partidos de esquerda aprovadas no Orçamento, acima de um terço convocaram a ira do Governo. E, por mais surpreendente que seja, o sol nasceu no dia seguinte e o mundo continua a pular e a avançar.

Houve então duas vitórias que se transformam em derrotas. Há depois uma derrota que resulta dessas duas vitórias. Satisfeito, o Governo radicalizou a estratégia de tensão que usou no último ano e agora na preparação do Orçamento, procedendo como se houvesse maioria absoluta. Para aqui chegarem e para se autoconvencerem, os dirigentes do PS têm repetido a convicção de que as eleições lhes deram mais poder. Engano. As eleições recusaram-lhes o que exigiram, a maioria absoluta, mas tinha sido em nome desse objetivo que haviam conduzido uma política de terra queimada. Falhando, ficaram pior. Depois, em despeito pelo resultado, declararam falecida a geringonça, que ainda poderiam ter tentado recuperar. Chegados ao Orçamento, proclamaram a ideologia solene do superávite (que, de facto, tudo leva a crer que já existe em 2019). Isso é um pot pourri da estratégia de tensão, que fracassou nas urnas e que é, apesar disso, amplificada desde então.

Admita-se que, na remodelação governamental com a saída de Centeno e de outros ministros dentro de um par de meses, esta configuração guerreira se possa alterar. Siza Vieira tem outro perfil, veremos quem será a sua equipa ou de outro ministro que ocupe as Finanças. A questão é que o Governo se acorrentou a uma doutrina económica, a primeira vitória, e a uma ideologia, a segunda vitória, que limitam a sua ação e estimulam que alguém, nos esconsos de S. Bento, continue a preferir uma boa guerra a uma negociação trabalhosa.»

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