13.2.20

Referendo ou hipocrisia?



«É surpreendente o descaramento com que se pretende ignorar o debate sereno e profundo que, em sede de apreciação na especialidade, se realizou na Assembleia da República há menos de dois anos, fazendo tábua rasa de tudo o que, por essa ocasião, se pensava definitivamente esclarecido quanto aos projetos de regulação legislativa da morte assistida.

Procedeu-se nessa altura à mais ampla auscultação de todas as pessoas e instituições interessadas. Foram todos ouvidos e interpelados por dois grupos de trabalho sucessivamente constituídos no âmbito da Primeira Comissão, para satisfazer duas petições contraditórias, sobre a mesma matéria, endereçadas à Assembleia da República. Um desses grupos de trabalho era justamente presidido por uma deputada do grupo parlamentar do CDS. É incompreensível que, tão pouco tempo depois, o debate tenha sido reaberto com um apelo demagógico e oportunista à realização de um referendo, insinuando que estaria em causa a legalização da eutanásia, um crime previsto e punido pelo nosso Código Penal que, evidentemente, ninguém pretende apagar.

Mas é também absurdo que, ao mesmo tempo que afirmam que a vida não é um bem que dependa do voto, venham reclamar a realização de um referendo para fazer abortar qualquer oportunidade para a consideração séria de uma questão delicada onde se procura harmonizar direitos fundamentais conflituantes de que dependem a vida, a liberdade e a dignidade humana. É isso que está em causa, só isso, sem prejuízo da necessidade de reforçar o apoio público ao alargamento da rede de cuidados paliativos, agora invocado como pura manobra de diversão...

Não há direitos nem valores absolutos. Seria miserável e infeliz a sociedade que apenas reconhecesse aos cidadãos o direito à vida, ou apenas a liberdade de uma só religião ou ideologia, ou a igualdade sujeita a uma qualquer servidão. Uma convivência civilizada constrói-se nas democracias constitucionais pelo esforço de reconciliação proporcional de pretensões contraditórias, pela procura de um equilíbrio justo entre direitos e deveres, a pedagogia da tolerância, o respeito pela liberdade. É essa a missão do Estado de direito e é ao Parlamento que compete deliberar sobre uma medida excecional, ditada pela compaixão perante um ser humano que enfrenta intolerável sofrimento, sem esperança, e que inequivocamente reclama ajuda para manter até ao fim a dignidade com que viveu.

Por fim, trata-se, ostensivamente, de uma ofensa ao próprio estatuto parlamentar, um contributo perverso para a descredibilização da democracia representativa que degrada o significado do mandato e aliena a responsabilidade dos eleitos, ignorando que o sentido da vida é, definitivamente, aquele que cada um, no seu foro íntimo, lhe atribui.»

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