1.3.20

Não é possível prever quase nada na História



José Pacheco Pereira no Público:

«Um homem que se diz socialista está muito à frente na competição pela nomeação para candidato presidencial americano no Partido Democrático. Sim, nos EUA. No Parlamento português foi apresentado e recusado administrativamente um projecto de castração química. Uma maioria de deputados portugueses votou a favor da legalização da eutanásia. Vasco Pulido Valente morreu e uma nuvem de panegíricos ouviu-se por todo o lado. Parece que não foi ele que morreu. A ameaça de uma epidemia levou as equipas de futebol italianas a jogar em estádios vazios de público. Um governo português tentou fazer um aeroporto pela enésima vez e falhou porque uma lei de que ninguém se lembrou dá a um grupo de pequenos municípios um direito de veto sobre a obra. Um jogador negro saiu do campo por ter sido insultado com frases de carácter racista e subitamente todo o Portugal desatou a fazer juras anti-racistas. Nos EUA, um mentiroso patológico sofrendo de uma perturbação narcisista caminha, com muito poucos travões, para uma autocracia. A NATO, que parecia eterna, está comatosa. O ditador da Coreia do Norte é tratado pelo Presidente dos EUA como se fosse seu namorado. Um cavaleiro tauromáquico, cuja profissão é torturar animais em público, foi processado por maltratar uns galgos que tinha a morrer à fome. Angola sob a direcção do MPLA tornou-se a capital africana do combate à corrupção. Soldados portugueses estão no Kosovo, no Mali ou no Afeganistão, terras essas de quem nem sequer no Estado-Maior devia haver um mapa decente que não fosse do National Geographic. O Reino Unido entrou para a União Europeia e depois saiu. Há um movimento no PS e no Bloco de Esquerda para candidatar Ana Gomes à Presidência da República. Portas é lobbyista de negócios latino-americanos e africanos. Marcelo Rebelo de Sousa é Presidente. O aeroporto da Madeira tem o nome de um jogador de futebol. O Partido Socialista é defensor do défice zero e das “contas certas”. A Maçonaria tentou tomar conta do PSD. Um número significativo de portugueses usa uma rede social criada para que meia dúzia de estudantes soubessem que namorados tinham (ou não tinham) as suas colegas na universidade. A Quadratura do Círculo tornou-se a Circulatura do Quadrado. Os adolescentes passam o dia a mandar mensagens uns aos outros. Centenas. Ainda não há TGV. Um partido que quer um Serviço Nacional de Saúde para os animais tem um grupo parlamentar. Santana Lopes saiu do PPD/PSD e não tem nada. O Presidente francês tem um exército aguerrido de gente vestida com coletes amarelos. O desprendimento de glaciares na Antárctida é notícia de primeira página. Há paradas de orgulho LGBTQ+ em Vila Real. Ninguém sabe o que é o +, mas ninguém liga, nem ousa perguntar. Existe censura feita por uma multidão de anónimos na Internet. A verdade está moribunda nas redes sociais. A mentira domina as redes sociais. Vladimir Putin manda na verdade e na mentira e o Presidente dos EUA é o seu discípulo dilecto. Podia encher páginas e páginas disto.

Pensem sobre cada um destes factos e andem 30 ou 20 anos para trás e vejam quantos destes acontecimentos seriam previsíveis. Com muito esforço encontramos dois com alguma similitude com eventos passados, o que significa que existe uma débil recorrência: um, mais um falhanço de governos com a construção de uma grande obra pública por uma combinação de negligência e arrogância; outro, a precedente epidemia da gripe das aves, mas mesmo assim muito mais mitigada do que a actual do coronavírus. Mas a maioria é efectivamente surpresa, não se estava à espera e não se previu. Embora possa haver algumas tendências de fundo, no essencial a História é sempre surpresa e é por isso que os homens sábios da política e da acção devem ler Clausewitz. Adaptado aos tempos modernos, isso significa que se se quer atravessar um deserto sólido de chão duro porque não chove há 500 anos, o bom comandante de tanques prepara-se para a chuva e lama.

Fazer planos e previsões dá-nos a sensação psicológica que dominamos o futuro, mas o ruído é a voz da natureza. É por isso que esta coluna se chama o “ruído do mundo”.»
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