29.3.20

Teimosias e isolamentos



«Caríssimos, tenho ouvido e lido muito sobre a “teimosia” dos mais velhos, que não deixam de sair de casa e não respeitam o isolamento social. No entanto, fico um pouco surpreendida por não ter lido nem ouvido ninguém (nem mesmo o Dr. Daniel Sampaio) referir aquilo que me vai no pensamento e que aqui partilho convosco. Pelo que me apercebo, a nossa população idosa, na sua ampla maioria, conhece involuntariamente o isolamento há muitos anos: há muitos anos que vive uma vida que não escolheu e para a qual toda a vida que teve antes não a preparou. A sua noção de quotidiano foi moldada na ideia de uma estrutura familiar coesa, de uma casa cheia (em qualquer condição financeira, em qualquer situação de harmonia ou de desarmonia). E essa estrutura familiar coesa não era algo que para eles fosse minimamente questionável.

A vida encarregou-se de lhes mostrar o quanto estavam enganados: a família foi-se separando, eles foram ficando cada vez mais sozinhos entre as suas quatro estreitas paredes ou enfiados em lares ou residências como numa arrecadação, como roupa que deixou de servir, como electrodoméstico que se avariou, como objecto inútil. Sem recursos emocionais que os preparassem para enfrentar o seu novo estado, viram-se a afundar no poço da solidão, incrédulos de que ninguém percebesse a ignomínia que lhes estava a ser feita. Aos poucos, muito lentamente, foram construindo a sua minguada rede de salvação, saindo da sua reclusão forçada para um passeio, uma compra, uma troca de palavras com os vizinhos, empurrando com mãos ambas o momento de voltar a enfiar-se nas paredes cada vez mais estreitas das suas casas, adiando o encontro com aquele fantasma de abandono que os atormenta mesmo quando cabeceiam, mesmo quando nele não pensam.

Agora que a espada de Dâmocles está sobre a cabeça de todos nós, os que nada sabem de isolamento vêm ter com eles para, em coro, manifestarem a sua preocupação por não se isolarem nestes dias de crise. Confesso que eu não sei o que lhes vai na cabeça, mas imagino que pensarão que a sua preocupação chega tarde, que teria sido útil há muitos anos quando lhes teria evitado a mastigação difícil e demorada de uma vida que foram forçados a ter. Não recriminam, pois eles próprios compreendem como as circunstâncias do dia-a-dia se alteraram drasticamente ao longo das últimas décadas, mas subconscientemente não aceitam que lhes seja exigido mais um isolamento forçado dentro do seu isolamento vivido. Para eles, não se trata de um período de contenção que dura semanas. Para eles tornou-se na sua história de vida.

Será preciso muito carinho e persuasão para que também eles cerrem fileiras nesta fase, mas creio que isso só será conseguido se lhes for acendida a vela da esperança de que a preocupação dos seus e dos outros (todos nós) ultrapassará a linha temporal do vírus, lhes será companhia num “depois” que, por muito difícil que venha a ser, será sempre mais fácil se não se sentirem sozinhos.

Gostaria que entre as transformações que esta pandemia irá causar na sociedade, venha a constar a da melhor atitude perante os idosos, que, caso as pessoas se esqueçam, é o adjectivo identificativo que corresponderá a quase todos a partir de um dado momento. Acredito que, a acontecer, desse novo paradigma poderá nascer um melhor futuro para todos.

Enfim, caríssimos: Fiquem em casa e não se esqueçam deles... nem agora nem depois.»

Luísa Venturini no Facebook
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