«Toda a gente gosta de dar o seu contributo para a crise, de preferência ganhando algum com isso. Toda a gente tem uma ideia, uma ideia salvífica ou uma ideia catástrofe. A ideia mais útil neste momento, em que mal entrámos na crise — e a palavra crise foi tão gasta que está desvalorizada e pode ser aplicada a tudo, desde a crise existencial à crise sistémica —, é a de que da próxima vez será pior. Os especialistas do cataclismo avisam que isto não é nada, um nadinha, e que a próxima pandemia, outra palavra a perder valor na bolsa lexical, será pior, muito pior. Virá da China, como todas as pandemias, será mais mortal e mais devastadora do que esta, matará mais e será o resultado não do morcego e do pangolim ou de outros animais exóticos que se queiram juntar ao âmago do problema mas sim do modo como tratamos a Natureza. A Natureza seria, portanto, uma entidade orgânica unívoca, com um comportamento semelhante ao humano e que pratica e conhece os estados da vingança e da retribuição. A Natureza parece-se muito com uma mulher lívida de raiva, nesta leitura dominante.
Na próxima pandemia, teremos variações extremas da febre hemorrágica, assim entre o ébola e o Marburg, e os coronas descem de posto. Do lado desta extensa família de vírus, mais antiga do que a família humana e muito mais numerosa, a despromoção poderá não ser bem recebida, pelo que não é de excluir que se vinguem e que tenhamos em cima de uma pandemia pior do que esta outra pandemia mais ou menos parecida com esta. Estas distopias não servem para ganhar dinheiro, a não ser transformadas em livros ou em filmes catástrofes, e, como de filmes estamos parados, os livros são uma boa ideia. Devido à crise do livro, tais teorias esdrúxulas são oferecidas gratuitamente nas redes e distribuídas por todos os espíritos crédulos, que em vez de resolverem o problema que têm gostam de conhecer os problemas que não têm.
Nos especialistas do apocalipse contam-se vários cientistas, um grupo social muito sobrevalorizado, onde florescem os cientistas malucos. A caricatura do cientista maluco deslizou por vários filmes e livros de paupérrima ficção e atingiu o seu esplendor nos vilões do James Bond. É uma figura da banda desenhada, agora recuperada para a virologia e a futurologia. De todas as teorias malucas, a mais fácil e logo adquirida pelos ecologistas malucos é a de que a espécie humana é um vírus do planeta e que o planeta, ou a Terra, a tal Terra vingativa e feminina, está a eliminá-lo com doses maciças de viroses, lixívia do Trump e remédios para a malária. Para estes, a Terra sem humanos é um paraíso. Creio que ninguém perguntou aos dinossauros a opinião, um contributo bem-vindo, se os pudéssemos ressuscitar. Coisa que os chineses, com as suas pesquisas laboratoriais avançadas e seguríssimas e as suas clonagens de humanos, decerto poderão fazer no futuro, como espécie dominante.
Convém avisar que o melhor livro sobre pandemias assustadoras acaba de ser publicado e é de Lawrence Wright, o autor do melhor livro sobre o 11 de Setembro e a Al-Qaeda do Osama, “A Torre do Desassossego”. Wright tem a particularidade de escrever livros sobre catástrofes pendentes e que são publicados quando as catástrofes deixam de ser pendentes. Escrevendo habitualmente para a “New Yorker”, Wright é uma voz com autoridade sobre factos e a prudência de os colocar antes dos argumentos. O que quer dizer que é um ótimo jornalista de investigação. Este “The End of October”, saído nos Estados Unidos, traz-nos mais uma febre hemorrágica, Wright estava a pensar no ébola e não no corona. Tendo investigado os vírus de fio a pavio, incluindo os SARS, de que a covid faz parte, conclui para nosso desassossego que os vírus vieram para ficar e que existem mais vírus do que estrelas nas galáxias. São muitos, só os morcegos albergam milhões, mais do que os nossos sete biliões. O que espanta não é que tenhamos uma pandemia, é como é que não tivemos uma pandemia por mês. Mistérios da Natureza.
Falando de coisas mais práticas, uma ideia que faz caminho é a da sociedade em plexiglass. Parece que a grande solução para o desconfinamento seria a introdução do plexiglass nas nossas vidas. Quem investir em plexiglass fica rico, esqueçam as apps e as startups. Esta é a manufatura futura. Comecemos pelos restaurantes. Toda a gente sabe que a alegria do restaurante, aquilo a que chamamos o ambiente, é uma das suas qualidades. A comida pode ser boa, mas um restaurante vazio e silencioso, onde os criados espiam o menor gesto e ouvem as conversas, é de evitar. Mesmo um Michelin estrelado. Vai-se ao restaurante para conversar, comer, conversar mais, beber. A chamada convivialidade, uma das palavras mais recentes e mais usadas, uma das palavras mais horríveis, é a base da ida ao restaurante. Imagine que para ir ao restaurante tem de usar luvas, máscara e botas de plástico, tem de ser testado com um termómetro, tem de ser borrifado com desinfetante e untado com gel, tem de ficar a milhas das outras mesas, tem de encomendar por linguagem gestual, usando menos perdigotos infecciosos, visto que o criado está a dois metros da mesa, e tem — aqui entra a ideia luminosa — de ficar separado dos outros comensais, incluindo os seus, por um plexiglass.
É verdade, um separador de plexiglass proteger-nos-á do corona e fará com que possamos jantar e almoçar à vontade, do nosso lado do acrílico, autorizando-nos a falar com a boca cheia. Claro que a ideia da sobremesa partilhada fica posta de parte, e sabe Deus como esta ideia vingou desde o assassínio do açúcar, e a ideia de uma ‘vaquinha’, um prato a meias, também. Para os casais felizes que apenas puxam do telemóvel e não dizem uma palavra durante a refeição, enquanto falam com os amigos no Facebook e fotografam a comida para o Instagram, a introdução do plexiglass não prejudicará. Para todos os outros, as pessoas normais, olhem, habituem-se.
Deixarão também de ir ao restaurante, e de andar de avião, onde o plexiglass separará os assentos, as crianças e os velhos. As crianças porque são assintomáticas, sobrevivem e são perigosas para os adultos. E os velhos porque são doentes facilmente infetados e são um perigo para toda a gente, além de serem uma custosa maçada. Os velhos ficam confinados, e as crianças, que lidam mal com o plexiglass, logo se vê. Pode ser que inventem o restaurante com creche acoplada. Ora, o preço do bitoque e do arroz de marisco, do flan e da mousse caseira, não vai ser o mesmo. Vai custar mais do que andar de avião, para compensar os custos da proteção. Os hospitais privados já começaram a tributar-nos a dita.
Não podemos pôr de lado estas duas boas ideias, a da pandemia pior e a do plexiglass, porque na sociedade zombie onde vamos viver é assim que vai ficar tudo bem.»
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