«De cada vez que o Governo apresenta aos portugueses as regras de segurança para o admirável mundo novo que aí vem, a minha vontade é a de ficar em casa para sempre. Bem vistas as coisas, talvez seja esse o objetivo das autoridades. Expelir uma tal quantidade de regras e conselhos, limitações e normas, proibições e avisos que o cidadão comum, sempre pouco dado à leitura das letras miudinhas dos contratos, avente tudo ao ar, se resigne ao take away, à Netflix e ao passeio higiénico na varanda, qual canário confinado à gaiola.
Também pode acontecer que o cidadão refratário se canse dos tratos de polé, do bom e velho paternalismo travestido de “pela-sua-saúde”, e desate a infringir todas as regras que lhe apareçam pela frente e mais algumas de que os burocratas e engenheiros da saudinha ainda não se lembraram, com projeção e pulverização de gotículas contestatárias para cima de todos aqueles, polícias ou aspirantes à função, que se interponham entre si e o gozo de um belo dia de praia sem fita métrica na alcofa, sem divisórias de acrílico e com vista desimpedida para os monumentos da toalha ao lado.
Como diz o nosso primeiro-ministro, vamláver. Que ponham os espectadores de teatro a dois, três ou vinte metros de cada um é coisa que não comove o português médio que, das artes cénicas e tudo o que se passa nesses meandros, tem uma vaguíssima ideia, não sei quê do Gil Vicente e, já viu qualquer coisa na televisão, gente em pelota e a dizer palavrões. Música clássica costumava ouvir nos anúncios, Old Spice e Javisol, e Deus o livre de algum dia assistir a danças modernas, óperas ou atuações de orquestras sem adufes e cavaquinhos.
Já as restrições aos restaurantes são coisa que o desgosta porque nem só de pão vive o homem e embora se vá ao restaurante encher a barriguinha, o corrupio de empregados em equilibrismos de bandeja, o alegre cafarnaum de todos ao molho e fé em Deus, o “dê-me licencinha” e o “esta cadeira está ocupada?”, são parte inalienável do património imaterial de ir comer fora. Mas, pronto, nada que uma chispalhada bem apuradinha não resolva.
Agora, o que lixa o português – e que me lixa a mim, que nestas coisas não sou nem mais nem menos português do que qualquer outro – é quando lhe começam a mexer na rica praia e ameaçam tornar a inigualável experiência de deslocar um pelotão familiar para a Fonte da Telha ao domingo de manhã num processo de controlo de fazer inveja às alfândegas chinesas.
O português conhece-se mal e parcamente, mas aos outros portugueses conhece-os de ginjeira e sabe que poucas coisas lhes dão mais prazer do que arruinar o prazer alheio. Se alguém se lembra de senhas, não há de faltar quem lhe acrescente bandeirinhas. Se as bandeirinhas não chegarem, de uma mente brilhante há de brotar a ideia dos torniquetes e dos semáforos e dos polícias e dos fuzileiros e das lanchas e das fragatas e um dia estendemos a toalha no areal de Carcavelos e damos por nós no meio do desembarque na Normandia.
Com as autoridades o português ainda sabe lidar. São séculos de amaciamento verbal, “é só desta vez, “ai não sabia”, “ainda no outro dia vim cá e não pediram nada disso”, “mas tem mesmo de ser”, de súplicas oculares enquanto se aponta para a infelicidade dos miúdos enfiados no monovolume, de cerviz dobrada que tem mais de manha do que de servilismo, e tudo se resolve com o proverbial jeitinho. Pior vai ser lidar com os compatriotas que, munidos de smartphones e do espírito de revisores da Carris, estarão atentos à mínima infração balnear: “olha aquele a menos de dois metros e meio da toalha do outro”, “olha aquela a desrespeitar a distância de segurança dentro de água”, “olha o gordo a comer uma sandes a pingar de polinsaturados”.
Os doutores estão preocupados com uma segunda vaga da Covid-19, mas tirem aos portugueses a praia que eles conhecem e pela qual anseiam, encham o areal de polícias e as arribas de delatores, e teremos uma guerra civil.»
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