«No dia 2 de Março, que marcou o começo do surto do covid-19 em Portugal, eu, como estudante chinesa de mobilidade, estava em Lisboa e decidi ficar no país para acabar a mobilidade que duraria até ao fim de Julho. Na altura, os episódios de discriminação contra chineses registados em Portugal ainda eram raros, enquanto já estavam a aparecer atitudes preconceituosas e hostilidade contra nós noutros países. Sentia sorte por estar aqui, segura das discriminações. Mas com o tema do coronavírus a ser tudo na vida, as coisas mudaram em Portugal. Comecei a saber de mais casos de discriminação que aconteceram a amigos chineses, a ver cada vez mais comentários discriminatórios a aparecerem em sites portugueses.
Depois de ter sido chamada coronavírus numa rua em Toledo porque estava de máscara quando esta se demonizou pela maioria dos europeus e de ter sido encarada com olhar ofensivo numa rua em Lisboa por ter tossido duas vezes ao sentir comichão na garganta — episódios que não passavam de reacções ignorantes, mas aceitáveis, face ao medo pelo vírus —, há uns dias fiquei chocada ao ver o Jornal da Tarde, na RTP: numa entrevista, um menino cantou “Ai a minha vida... este coronavírus veio para Portugal, foi jogado pelos chineses. Eu mando pô-lo fora!” No fim da entrevista, a jornalista perguntou quem inventou a letra e o menino respondeu: “Nós, os ciganitos.”
A entrevista realizou-se no contexto de um projecto que procura esclarecer a situação do vírus em bairros mais pobres de Algarve. No entanto, a minha preocupação é outra: é essencial a democratização do conhecimento científico sobre o vírus, mas a campanha contra a discriminação não se deve ignorar, visto que a doença pode desaparecer, enquanto o preconceito, já enraizado, nunca se elimina facilmente.
Todas as experiências de discriminação — desde as minhas às de outros chineses que já presenciei — deixaram-me chocada pelo facto de a ideia de a China ser culpada por este vírus já ter uma divulgação tão alargada e estar tão arreigada na cabeça de meninos que talvez ainda nem saibam ler. Sinto-me feliz por aquele menino de olhar inocente se manter, sob o apoio social, a salvo do vírus. Mas triste porque foi “contagiado” sem consciência por um preconceito espalhado entre a comunidade. O menino pode não estar a perceber a conotação hostil da letra contra uma raça, mas infelizmente ninguém o corrigiu. Estou com receio que, vivendo num ambiente assim, com preconceitos como “o outro é inimigo” e com toda a gente de braços cruzados, apareçam cada vez mais pessoas com atitudes ainda mais tendenciosas e agressivas para com uma comunidade e um país.
Quando o novo coronavírus se divulga, o vírus mental representa um risco de contágio mais forte. Quando cada vez mais pessoas consideram a China culpada, há risco de se justificarem acções como o ataque de fezes contra dois alunos chineses, recentemente registado na zona de Picoas, em Lisboa, a atitude indiferente da polícia ao caso, a canção inapropriada divulgada, etc. Num mundo de incompreensões e discriminações, somos cúmplices. Neste mundo, uma propaganda enganadora, uma expressão preconceituosa, um olhar discriminatório podem ser uma bomba-relógio.
Estamos a falhar na descontaminação contra discriminações: falhou a família na educação da igualdade, falhou a RTP em transmitir ideias inapropriadas ao público e em mostrar a falta de empatia pelos chineses, falhou toda a sociedade ao não mostrar uma atitude dura na defesa de um grupo vítima de discriminação. Estamos a falhar na empatia.
Quando começou a circulação da teoria de que a China era responsável por tudo e das críticas irresponsáveis contra os chineses, estas foram rapidamente aceites por muitas pessoas, sem perceberem o que se esconde atrás da propaganda, sem duvidar da autenticidade das notícias. Ninguém culpava um país pelos vírus do HIV, da gripe H1N1 ou do MERS-Cov, que causaram à humanidade danos incompensáveis. Ninguém tentou perceber que o vírus é politizado e utilizado como ferramenta de propaganda para atacar um país, uma etnia e cultura. Ninguém quis admitir que foram os profissionais de saúde chineses, os cidadãos chineses e o Governo a, perante uma nova doença e incertezas, tacteando nas trevas, lutar na linha da frente contra o vírus.
Quando as publicidades dizem “Somos folhas da mesma árvore”, “Ficamos ligados” e “Por si e por todos”, sinto-me isolada: parece que eu, o meu país e o meu povo somos excluídos da empatia e união mundial, que os nossos esforços no combate ao vírus não merecem a atenção e defesa contra os sentimentos xenófobos.
Nós, chineses, sentimos a indignação com as críticas infundadas, discriminações e desprezo por aquilo que o Governo e o povo fizeram. Sentimos a urgência da empatia pelo facto de sermos, como qualquer um que sofre com a pandemia, vítimas. Queremos que todo o mundo saiba que os chineses estão a sofrer incompreensões e discriminações, que os tratamentos injustos para connosco devem ser levados a sério.
Somos diferentes, mas partilhamos a mesma afectividade na luta contra o coronavírus. Ter feições chinesas, falar o idioma chinês e ser chinês nunca podem ser a razão para o ataque racista. Nenhuma doença precisa de um bode expiatório. Nenhuma acção tendenciosa se escusa. Perante as doenças, somos todos vítimas. Perante as discriminações, devemos ser missionários da empatia, verdade e imparcialidade.
Dias melhores estão a avizinhar-se? Para os grupos de risco da covid-19, sim. Mas para os grupos de risco no que diz respeito à discriminação e à xenofobia, esses dias ainda estão longe. Ficamos à espera da empatia popularizada.»
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