«”Não consigo respirar”. O grito, como é sabido, não é de nenhuma vítima da Covid-19, mas sim de George Floyd, o cidadão negro, afro-americano, de 46 anos, que foi executado barbaramente por um polícia em Minneapolis. A frase foi repetida dezenas de vezes, em estado de aflição, enquanto o polícia continuava a esmagar com o joelho imperturbável a garganta de Floyd. Ao contrário do que escreveu alguma imprensa, o polícia não se “ajoelhou no seu pescoço”. Asfixiou-o deliberadamente. Floyd não morreu por isso em nenhum “incidente”. Perante os apelos dos transeuntes para que o deixassem respirar e a passividade criminosa dos restantes agentes policiais, que recusaram prestar qualquer assistência a uma pessoa que estava a ser assassinada, George foi linchado por quem tem, supostamente, a missão de proteger os cidadãos.
“Não consigo respirar”. Foi também este o grito, repetido desesperadamente mais de uma dezena de vezes, por Eric Garner, cidadão negro que tinha 43 anos quando foi estrangulado ate à morte, durante mais de 15 segundos, em julho de 2014, por um agente da polícia de Nova Iorque, também ele um homem branco. O caso, seis anos antes numa outra cidade, e que terminou sem qualquer condenação do homicida, tem todas as afinidades possíveis com o de Minneapolis. E mostra como nada parece ter mudado para todos aqueles que não podem sentir-se seguros se a polícia estiver por perto.
Enquanto tantos se mobilizam, um pouco por todo o mundo, para combater um vírus que nos impede de respirar, para que haja ventiladores capazes de salvar vidas, há outras vidas e outros corpos que são tratados como se não tivessem direito a viver. Como se o poder pudesse dispor deles e eliminá-los.
A asfixia dos negros não vem, como se sabe, de agora. Estes episódios estão longe de ser acontecimentos isolados. Muito menos são tristes coincidências. São, de facto, a expressão da política do racismo estrutural, que é brutal nos Estados Unidos, mas não só. Estas histórias, que nos revoltam por dentro, existem porque foram conhecidas, porque alguém filmou e nós as testemunhámos. Imaginem agora quando não há ninguém a registar o que acontece, quando é no silêncio e na impunidade absoluta que estes assassinatos acontecem. Quantos não existem, todos os dias? Quanta violência racista é perpetrada sem que nunca ninguém seja condenado por isso? Sabemos bem, em Portugal também. É preciso lembrar Alfragide, por exemplo?
É por isso que me declaro solidário com quem manifesta a sua indignação e a sua repulsa, que são também minhas, contra esse racismo larvar que atira migrantes e negros e pobres para as periferias das cidades e dos empregos mal pagos, para as vias desvalorizadas do ensino e para os transportes cheios e expostos à doença, para as prisões e para os bairros com poucas condições. Para a violência estrutural às mãos das instituições.
Em Minneapolis, esta revolta é já um potente grito coletivo e multirracial que ocupou as ruas, com gente de várias comunidades e pertenças, com igrejas solidárias a abrirem as suas portas para abrigar os manifestantes durante os ataques de gás lacrimogênio da polícia, com comerciantes a anunciar o seu repúdio pelo que aconteceu, com gestos importantes como o de Joan Gabriel, presidente da Universidade de Minnesota, que anunciou, numa carta pública, o corte de todos os contratos com o Departamento de Polícia de Minneapolis e o cancelamento de qualquer pareceria para a segurança de concertos, palestras ou outros eventos daquela instituição.
Está visto, é certo, que vai ser preciso muito mais luta para que as coisas mudem. Hoje mesmo, Omar Jimenez, um repórter negro da CNN que tem coberto as manifestações naquela cidade, foi detido pela polícia em pleno direto televisivo. As imagens deixam qualquer um perplexo – a mim, pelo menos, deixaram-me boquiaberto. Depois de tudo o que se tem passado, Jimenez é levado pela polícia sem que se perceba porquê: “Por que estou preso?”, pergunta em direto. A polícia divulgou mais tarde a sua explicação: o repórter e a equipa haviam sido detidos por não se terem afastados quando receberam essa ordem. A câmara televisiva, caída no chão, continuou a transmitir as imagens em direto.
Os olhos do mundo estão em Minneapolis, porque Minneapolis é em muitos lugares do mundo. George Floyd é hoje o símbolo das vítimas deste vírus insuportável que torna as nossas sociedades irrespiráveis. O racismo mata, de muitas maneiras. E será só pela nossa luta sem tréguas e sem hesitações que poderá ser erradicado.»
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