5.6.20

Tristes, moralistas e todos sábios



«Era uma terra bonita, em retângulo, que o mar docemente lambia.

Porém, esta língua de terra era habitada por gente triste, macambúzia e sempre desconfiada. E porque triste e desconfiada era empedernidamente moralista. Desde o zé das iscas de cebolada até ao eminentíssimo professor catedrático de qualquer coisa, todos se mostravam mais impolutos que Catão, o velho. Talvez melhor: ao lado deles Catão era uma lambisgoia, um safardanas, um tipo sem espinha dorsal. Em resumo: um verdadeiro energúmeno, um abjeto ser moral.

E tudo isto se passava sem discussão, porquanto cada um se considerava intocável. Um verdadeiro ser moral puro. Incontaminado. Tinha-se conseguido alcançar a pureza moral. E ai daquele que ousasse dizer: talvez não seja bem assim. De supetão todos lhe caíam em cima, sem dó nem piedade. Porque um verdadeiro triste e moralista, em caso algum, pode admitir que, ao seu lado, alguém mande às malvas a tristeza e se assuma feito das mais banais virtudes e vícios. Daqueles vícios que doem e fazem corar as donzelas ou os infantes, todos eles também moralmente puros. Admitir isso seria a desordem, o caos social, a destruição dos templos e a subversão moral. E os habitantes daquela terra sabiam disso, porque as mais altas esferas lhes diziam que eles eram os "melhores do Mundo", logo, o que defendiam era o que estava certo, desde o princípio dos tempos.

E um dia veio uma tempestade de peste. Igual a tantos milhares de outras com que a humanidade tem convivido e sobrevivido. E uma outra qualidade apareceu. Todos se tornaram sábios. Todos, sem exceção, ficaram a saber projetar, com sofisticados cálculos matemáticos, como se iria desenvolver a pandemia. E a informação, verdadeira ou falsa, pouco importa, porquanto, razoavelmente sabe-se - tem-se até medo de empregar o termo razoável em declinação de advérbio - que nestes tempos de medo construído, qualquer informação é logo tida como verdade proferida pela boca dos deuses. Sábios em epidemiologia, virologia, infecciologia, psiquiatria, psicologia, estatística, matemática aplicada e tudo sempre sustentado em "estudos". Categoria epistemológica que deve acompanhar um sábio que se preze. E como por encantamento aquele lindo pedaço de terra tornou-se no território mundial mais densamente povoado de sábios. Muitos deles sustentados na valência do "achismo", mas nem por isso menos sábios. E apareceu de tudo. De tudo, mas sábio.

E deste jeito, de um dia para o outro, todos continuaram tristes, o que está de acordo com a sapiência - pode lá conceber-se um sábio alegre -, e seguiram sendo moralistas, o que também é consonante com a sapiência - pode lá imaginar-se um sábio doidivanas e estarola viciado. E, novamente, assim, por mor da agressiva natureza, se percebeu que as qualidades dos habitantes, daquela terra abençoada, eram infinitas. "Gaudeamus"! (Rejubilemos!)»

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