«As manifestações anti-racistas surgidas em todo o mundo como reação ao assassinato gratuito de George Floyd por um polícia branco norte-americano podem indiciar uma mudança no sistema de valores, não só quanto a referências, mas também quanto a práticas concretas.
Poder-se-ia dizer que este movimento pelos direitos dos negros norte-americanos, vitimizados por táticas brutais da polícia desde a emancipação falhada do final da Guerra Civil em 1866, está na linha de vários protestos, desde o início do século XX, contra permanente abuso e linchamento, ate ao movimento dos anos 60, que finalmente abriu caminho aos direitos civis, com largos custos, como o assassinato de Martin Luther King, Jr.
Contudo, há algumas diferenças radicais em relação a protestos anteriores. Os movimentos racistas e supremacistas brancos estão em declínio; até aos anos 60 eram eles que assaltavam bairros negros e originavam os protestos. As pilhagens que se verificaram agora nalguns protestos, prejudiciais ao movimento anti-racista, têm sido condenadas, mas não os protestos em si. Nestes protestos vêem-se muitos brancos e asiáticos, ao contrário do que acontecia até aos anos 60. Finalmente, este movimento social tem-se espalhado a outros países, onde o legado colonial é visível nos locais de memória, na topografia e nos monumentos.
Há duas novidades que mostram a mudança rápida de opinião. Em primeiro lugar, o ajoelhar durante o hino nacional como protesto contra a discriminação racial, iniciado em 2016 no desporto, rapidamente condenado e banido, é agora autorizado, ao mesmo tempo que se vêem polícias brancos a ajoelhar em solidariedade com os protestos. Esta nova atitude estende-se a tradicionais corridas de automóveis organizadas no sul dos Estados Unidos sob a bandeira da Confederação, agora banida. Em segundo lugar, as autoridades locais, que durante décadas bloquearam qualquer discussão sobre estátuas controversas, consideram agora a sua transferência para museus.
A vandalização e destruição de estátuas podem ser contraprodutivas, dado o enraizamento de figuras do passado na memória coletiva. Ainda se está para ver as consequências políticas de todo este movimento, por exemplo, ao nível das eleições para a presidência americana em novembro. Contudo, Trump foi colocado na defensiva, é visível a perda de iniciativa depois de uma primeira tentativa militarista falhada por recusa das chefias militares e governadores de Estados. A verdade é que movimentos iconoclastas fazem parte da história, envolvendo a religião hebraica, o Islão e um breve período da Igreja Ortodoxa Grega, a reforma Protestante com exclusão de imagens em diversas regiões da Europa, a revolução francesa com o esvaziamento de igrejas, enquanto o pós-guerra, a descolonização e o pós-comunismo geraram natural substituição de estátuas públicas com sentido político.
Haverá um conflito de memória entre diferentes grupos sociais com interesses políticos opostos, mas na minha opinião estamos num ponto de viragem. A noção de direitos humanos, baseada na dignidade de todos os seres humanos onde quer que eles vivam e qualquer que seja a sua origem e religião, tende a prevalecer. Não se trata já da noção abstrata de Rousseau, que tanto influenciou a declaração dos direitos humanos proclamada pela revolução francesa, mas só se referia a brancos, ou a declaração de independência dos Estados Unidos, que retirou a referência ao esclavagismo dados os interesses dos estados do sul. Trata-se agora de uma atualização, na prática, da declaração universal dos direitos humanos aprovada pelas Nações Unidas em 1948.
Já nessa altura, o debate em torno dos direitos do indivíduo face ao Estado, considerado por Samuel Moyn como pedra angular, abriu-se aos direitos económicos e sociais. A meu ver, a posição de Moyn é limitada, os direitos humanos devem ser entendidos na sua complexidade. O respeito pelas minorias e a rejeição do racismo estão ali inscritos dado o genocídio dos judeus na II Guerra Mundial. Mas o que as últimas décadas trouxeram de novo foi um impulso coletivo para a concretização, na prática, desses princípios, ao nível do acesso a residência, emprego, educação, formas de mobilidade social que permitam quebrar a espiral de pobreza em que minorias e classes sociais estão encerradas.
Entretanto, os direitos das comunidades indígenas e os direitos do ambiente e dos animais têm-se afirmado, apesar dos recuos dramáticos em certos países, sobretudo no Brasil, onde a capacidade destrutiva do governo de extrema-direita podia ter ido ainda mais longe sem a resistência de instituições estaduais e federais. Esses direitos definem novas formas de solidariedade e de responsabilidade por uma relação equilibrada com o planeta onde vivemos e do qual dependemos. Mas há mais, o respeito pelas minorias de orientação sexual alternativa enraíza-se em muitos países, enquanto o respeito pelos direitos dos consumidores e pelos direitos dos trabalhadores, inclusive nos países em vias de desenvolvimento, se torna cada vez mais sensível. As empresas envolvidas em práticas de exploração de salários baixíssimos, ou de produção abaixo dos padrões mínimos de qualidade, arriscam processos de boicote que podem custar a quebra na bolsa ou a simples bancarrota.
O novo sistema de valores envolve uma nova ética de respeito pelas pessoas e pela natureza. O sistema económico capitalista baseia-se no lucro, mas os dias da sobreexploração de pessoas e recursos podem estar contados dada a tomada de consciência dos direitos humanos e ambientais. Os efeitos da globalização, como já tinha previsto Norbert Elias, poderão incluir a difusão desses direitos renovados e readaptados, com novos códigos de conduta a vários níveis, empresarial, organizacional, estatal. O desenvolvimento da economia social, com favorecimento de cooperativas, é uma opção que deve ser tida em conta neste novo período de ética social. A reforma do sistema, prometida por Elizabeth Warren, pode ser imposta simplesmente pela extraordinária crise atual, é uma ilusão pensar que tudo voltará ao que era.
Uma última palavra sobre Portugal: a ideia de que não existe racismo só me faz lembrar uma célebre sondagem de opinião no Brasil, em 1988, no centenário da abolição da escravatura, na qual 97% dos inquiridos respondeu não ter preconceitos de raça, mas 99% declarou que conhecia racistas entre familiares e amigos... O Brasil não é comparável, mas existem numerosos estudos da equipa de Jorge Vala desde 1995, bem como as sondagens regulares do Eurobarómetro, que mostram a existência de um racismo consistente, com preconceitos biológicos e culturais, no nosso país. Os dados disponíveis não colocam Portugal no grupo dos países europeus mais inclusivos. Temos claramente um problema educativo, que o negacionismo de parte da classe política certamente não ajuda a resolver.»
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