10.7.20

O SNS e as parcerias



«Desde há longos anos que as entidades privadas da saúde no nosso país, apesar de estarem sempre a apregoar as “virtudes” do mercado, têm vivido em grande medida dos dinheiros públicos.

Desde 2008, se não fossem os acordos de algumas dessas entidades com a ADSE e outros subsistemas de saúde de origem pública, diversos hospitais privados já teriam cessado a sua actividade.

Por outro lado, o aparecimento de clínicas como “cogumelos” está directamente relacionado com a forte diminuição da capacidade de resposta dos serviços públicos de saúde nessas zonas.

Desde 1990 até há cerca de um ano atrás esteve em vigor uma lei (n.º 48/90) publicada por um governo presidido pelo dr. Aníbal Cavaco Silva que estabelecia que o Estado apoiava o desenvolvimento do sector privado da saúde em concorrência com o sector público, a atribuição de incentivos à criação de unidades privadas e a fixação de incentivos ao estabelecimento de seguros de saúde.

Este enorme descaramento parasitário dos dinheiros públicos e de favorecimento dos negócios privados foi inaceitavelmente tolerado ou incentivado por alguns quadrantes político-partidários. Com o brutal embate provocado pela pandemia em curso, as unidades privadas eclipsaram-se, deixando o SNS (Serviço Nacional de Saúde) quase sozinho nesta luta violenta em defesa da vida dos cidadãos do nosso país.

Importa desde já sublinhar que ao contrário de outros países europeus, no nosso país houve, desde o início deste processo, uma acção de rigor no registo dos números de casos de infecção e das mortes que foram ocorrendo. Nesses países, durante grande parte do tempo só foram contabilizadas as mortes verificadas em meio hospitalar. Na generalidade dos países esta pandemia veio colocar à prova a capacidade de resposta dos respectivos sistemas de saúde e dos suportes sociais.

O facto de dispormos de um Serviço Nacional de Saúde (SNS) como pilar central de toda a actividade assistencial e da prestação de cuidados de saúde, possibilitou atenuar as debilidades decorrentes da falta crónica de investimento adequado nos serviços públicos de saúde.

O nosso país, nos aspectos essenciais, tem aguentado bem o confronto com a pandemia e tem suscitado reacções de surpresa e de elogio por parte de órgãos de comunicação social de diversos países. Se após a superação desta pandemia os nossos órgãos de Poder não conseguirem retirar as correctas ilações do que se tem passado, o próximo embate pode ser devastador. Basta olhar para a Grã-Bretanha, Espanha e Itália para podermos idealizar um cenário aproximado do que nos pode esperar.

Nesses países, as últimas três décadas têm constituído um deplorável processo de ampla ofensiva privatizadora e de asfixia financeira dos seus serviços públicos de saúde. O número de mortes aí verificado é uma tragédia revoltante de desprezo pela vida humana e de glorificação criminosa dos negócios.

Deste modo, urge desencadear no nosso país um enérgico programa de reorganização do SNS, preparando-o para cenários futuros que não são difíceis de adivinhar.

Ainda recentemente, o Presidente da República, a propósito da morte de um médico por covid, afirmou que “os profissionais de saúde merecem os adequados meios e carreiras no Serviço Nacional de Saúde”.

É curioso que tenha sido durante um mandato do seu pai (dr. Baltazar Rebelo de Sousa) como ministro da saúde e assistência que, em 1971, o seu secretário de estado da saúde, prof. dr. Gonçalves Ferreira, tenha desencadeado uma reforma da saúde que definiu os cuidados primários e a criação de centros de saúde como prioridades, além de estabelecer o regime legal para a estruturação progressiva e o funcionamento regular das carreiras dos profissionais de saúde (DL 414/71).

Neste contexto, tem de haver a decência republicana de promover uma política de delimitação de sectores na saúde. O sector privado na saúde no nosso país nunca foi hostilizado na sua livre acção empresarial tendo sempre usufruído, pelo contrário, de um constante e generoso fluxo de dinheiros públicos. A questão de fundo que se coloca, e que não pode continuar a ser escandalosamente escamoteada, é que o nosso dinheiro de contribuintes não pode servir para assegurar os lucros de accionistas privados à revelia dos próprios contribuintes.

Nesta perspectiva de transparência da gestão dos dinheiros públicos, as PPP (parcerias público-privadas) na saúde não devem ter os contratos prorrogados. Esse modelo chegou ao nosso país, tendo como um dos seus grandes entusiastas o então ministro da saúde, Luís Filipe Pereira, num governo presidido por Durão Barroso, quando em vários países, nomeadamente Grã-Bretanha e Canadá, diversos estudos mostravam já os seus resultados desastrosos. Nestes anos de existência das PPP na saúde do nosso país, não se vislumbra nenhuma vantagem em relação à gestão pública.

Por outro lado, é urgente pôr fim à situação escandalosa de grande parte das administrações dos serviços públicos de saúde que recorrem indiscriminadamente a empresas privadas para contratar profissionais pagos à hora, numa afronta intolerável e ilegal à contratação colectiva, e para realizar um grande volume de exames complementares de diagnóstico sem fazerem qualquer prova efectiva de que a capacidade instalada nessas unidades esteja esgotada.

O SNS deve estabelecer parcerias com entidades sem fins lucrativos e com uma clara componente social como são, por exemplo, as Misericórdias. Ao longo desta pandemia, as Misericórdias, que gerem cerca de metade dos lares sociais, estiveram sempre activas, tendo conseguido minimizar o número de óbitos de idosos sob a sua responsabilidade, com uma percentagem muito reduzida.

Se esta situação for comparada com o cenário dantesco dos lares na Espanha, França e Itália, onde o número de óbitos foi muito elevado, podemos ter uma ideia mais real da importância do papel na sociedade portuguesa das entidades sem fins lucrativos e do seu contributo insubstituível para o reforço da coesão social, sem a qual a própria democracia e a liberdade correrão riscos que não podem, nunca, ser subestimados.

A estruturação de uma plataforma de articulação e complementaridade na prestação de cuidados de saúde que facilite, em tempo útil, a acessibilidade dos cidadãos e promova uma gestão mais transparente dos dinheiros públicos destinados à Saúde, torna-se uma medida crucial nos tempos actuais.»

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