18.9.20

A lista de Vieira: da tragédia à farsa em cinco dias

 


«Eu sei que é suposto a História dar-se primeiro como tragédia e repetir-se depois como farsa, mas que diabo, ninguém me tinha dito que seria tão rápido. Na segunda-feira caprichei a escrever sobre a inclusão de António Costa na lista da Comissão de Honra de Luís Filipe Vieira como tragédia shakespeariana, com punhaladas e discursos grandiloquentes, e eis que cinco dias volvidos tudo se desfaz em farsa, com Luís Filipe Vieira a tirar inopinadamente da sua lista não só António Costa como os políticos que o tinham decidido honrar. 

A tentação seria repetir também a dose, e em vez da tragédia chamada Júlio César, que me serviu de mote na segunda, optar agora por uma farsa, talvez Comédia de Enganos. Mas não vale a pena. Não há nada de mais elaborado a dizer sobre esta reviravolta da história do que notar que a emenda conseguiu ficar ainda pior do que o soneto. Ou seja, os titulares de cargos públicos querem honrar Vieira, mas é Vieira a tirá-los da lista como se eles fossem desonrosos. É o mundo ao contrário! 

Tendo em conta o coro de críticas à mistura da política com o futebol num tempo em que sobre Luís Filipe Vieira impendem suspeitas de interferência com a justiça, o que se esperaria seria uma de duas coisas. Ou António Costa (porque é principalmente dele que se trata, enquanto chefe do poder executivo) mantinha a sua posição de que estar naquela lista fazia parte de uma parte da sua vida enquanto adepto de futebol que é absolutamente irrelevante para a política, pese embora a contradição aparente com o dever de reserva que ele recomenda aos ministros. Ou então António Costa tomaria em conta as críticas que lhe foram feitas e, dando-lhes razão no fundo ou aceitando os seus argumentos na forma, diria que tinha decidido retirar o seu nome da lista. 

O que acabou por acontecer, não sendo nenhuma dessas duas opções, pode parecer à primeira vista ter isentado o primeiro-ministro de ter de fazer uma escolha, ainda para mais quando o Presidente da República já tinha anunciado que este seria um tema da conversa semanal entre ambos. O assunto parece assim encerrado, mas a verdade é que deixa um gosto amargo, porque é precisamente ao primeiro-ministro que compete tomar este tipo de escolhas, para o bem e para o mal. Ao retirar com pouca cerimónia os titulares de cargos públicos da sua lista de honra, Vieira acaba por reforçar a ideia de que é o futebol que manda nisto tudo e que são os presidentes de clube os únicos a poderem verdadeiramente tomar decisões, nos tempos que correm, sem temerem consequências por parte da opinião pública. Mesmo aí, Vieira teria podido tomar uma atitude mais cívica, e humilde, declarando publicamente que lamentava a situação criada e que embora agradecesse a disponibilidade dos titulares de cargos públicos em causa, os desejava dispensar do compromisso que eles tinham assumido. Mas as boas maneiras parecem não fazer parte do acervo do presidente de clube de futebol. E foi assim que, tratando o chefe de governo como um daqueles treinadores a quem se dá uma chicotada psicológica dias depois de se lhe ter demonstrado confiança, Vieira acabou por pôr e dispor das pessoas que o tinham querido honrar com os seus nomes. 

Se este episódio já revelava uma estranha ausência do mais simples tato político, agora ele acaba por ilustrar uma problemática incompreensão dos valores republicanos. Não é, nunca por nunca ser, um presidente de clube de futebol que “despede” um primeiro-ministro, nem que seja da sua comissão de honra. Se António Costa foi surpreendido por esta decisão de Vieira, é mau. Se de alguma forma sabia dela antes, é pior, porque nesse caso teria aceitado esta menorização do cargo que representa. Prefiro então pensar que tenha sido exclusivamente Luís Filipe Vieira a tratar os seus apoiantes como objetos, assim como trata jogadores de futebol ou treinadores ou, quem sabe, juízes. Mas mesmo assim isso diz muito sobre o tipo de figuras deste mundo do futebol que as pessoas que faziam e fazem parte da comissão de honra dele estão a honrar com os seus nomes. Eles emprestaram-lhe honra, ele retirou-lhes dignidade. 

Para onde quer que nos viremos, tudo isto é triste, tudo isto existe, mas tudo isto é mais do que fado — ou futebol. Para um país, ser farsa não deixa de ser também trágico à sua maneira.» 

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