13.9.20

A verdadeira pergunta



«O anterior primeiro-ministro australiano revoltou-se contra a "ditadura sanitária" da era covid pelas suas consequências económicas ("Guardian", 2 de Setembro). Sugeriu autorizar as famílias a pensar se não seria justificado deixar morrer os idosos infectados, "deixando a natureza seguir o seu curso". Mais informou que cada ano de vida extra para os mais velhos custa à Austrália cerca de 100 000 libras, verba superior às que o Governo paga por medicamentos que salvam vidas. E culpa o clima de medo em que vivemos, pois impede os governos de colocarem a questão - "quanto vale uma vida?".

Ora reparem - a responsabilidade da decisão seria das famílias que, de resto, ele afirma já o fazerem. Penso tratar-se de uma menção à hoje consensual recusa do encarniçamento terapêutico. E só das famílias com um idoso afectado pela covid? Bom, a verdade é que chama a atenção para um quadro mais vasto - prolongar a vida dos idosos sai mais caro do que financiar tratamentos que salvam vidas menos longas. Quanto à natureza seguir o seu curso, é um argumento que, no limite, levaria à proibição do exercício da medicina, desde sempre ocupadíssima a "fazer batota" e trocar as voltas à natureza.

Resta a pergunta que os governos têm medo de colocar, porque todas são "preciosas" e as mortes são "tristes" - "quanto vale uma vida?". (Talvez o verbo não seja o mais adequado, em todo o artigo ele parece mais preocupado com o custo do que com o valor!). Mas mesmo o argumento economicista é mais complexo do que o senhor pensa. Num artigo de Dezembro de 2015, publicado no "American Journal of Public Health", Aldridge e Kelley argumentam contra a obsessão com os custos verificados durante o último ano de vida, dizendo que respondem por apenas 13% da despesa geral da Saúde. Mais - só 11% dos doentes "mais caros" estariam no seu último ano de vida, o problema a resolver centra-se nas doenças crónicas.

(Se o homem tropeça no artigo ainda sugere que as famílias considerem a hipótese de, por exemplo, pararem as terapêuticas para a hipertensão ou a diabetes e deixarem a pobre da natureza tratar da saúde aos familiares... de meia-idade!).

Não é uma voz isolada na nostalgia de transformar os mais velhos em baixas previstas, recordo um epidemiologista sueco a perguntar a um colega finlandês se não valeria a pena o aumento de 10% no número de idosos infectados caso as escolas se mantivessem abertas.

Na canção "Trocando em miúdos", Chico Buarque põe na voz de quem abandona a relação um murmúrio de dúvida - "e a leve impressão de que já vou tarde". Estas vozes procuram fazer-nos sentir o mesmo em relação à morte. E, hipócritas, falseiam a verdadeira pergunta que as atormenta - "Quanto vale uma vida de velho?".»

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