9.9.20

Quem tem medo da educação sexual? E da igualdade de género?



«Já tivemos famílias de etnia cigana nos tribunais exigindo dispensa da filha frequentar a escolaridade obrigatória, em nome da tradição. No Reino Unido há muitos casos de pais com as mais sortidas objeções de consciência. Pais extremistas tiraram os filhos das aulas de Educação Religiosa porque não aceitam que estes sejam contaminados com conhecimentos históricos sobre o Islão. Provavelmente acreditam que saber o ano da Hégira ou as diferenças entre sunitas e xiitas é três quartos do caminho para se oferecerem ao ISIS. 

Pelo seu lado, pais muçulmanos conservadores, tanto no Canadá como no Reino Unido, têm objeção de consciência às aulas de música. Em Birmingham, várias escolas tiveram de parar de falar aos alunos da parte curricular dos direitos LGBT, porque os progenitores correram às centenas para resgatarem os filhos e os salvarem de tais informações. 

Portugal, que não fica atrás no obscurantismo e na intolerância, também tem o já famoso caso do pai de Famalicão (sempre contente na televisão apesar do futuro escolar incerto da prole) que impediu os filhos de frequentarem as aulas de Cidadania e Desenvolvimento. E, aproveitando a conveniência da posição deste pai, um grupo bastante homogéneo de homens, com nomes sonantes (ainda que já um tanto fora de tempo), fez uma petição exigindo a possibilidade de objeção de consciência (dos pais) às tais aulas de Cidadania (dos filhos). Disciplina que, refira-se, o Comité das Nações Unidas para os Direitos das Crianças em 2019 aplaudiu e recomendou que o Estado português aprofundasse. 

O que os perturba? Não é, claro, o módulo da segurança rodoviária ou de empreendedorismo. O que transtorna as personalidades signatárias são os módulos da sexualidade – onde se enquadram a Educação Sexual e os temas da tolerância para com gays, lésbicas e transexuais – e da Igualdade de Género. 

Incrível, não é? Um país com números aberrantes de violência doméstica, crimes sexuais que têm aumentado nos últimos anos, sentenças iníquas dos tribunais garantindo a impunidade a violadores e agressores domésticos, diferenças salariais de 17% a menos para as mulheres, num momento em que 90% dos desempregados com a crise da covid são mulheres – e há quem faça petições contra o ensino da igualdade de género. 

Mas não espanta. Lá em cima falei em homens. É este o primeiro reparo que faço. Na petição de quase cem pessoas só 15 são mulheres. Um grupo de senhores, que julga ainda ser a palavra dos homens a encerrar os assuntos, com média de idades justificando a incapacidade de perceção das necessidades educativas dos anos 2020, que nunca necessitaram de se preocupar com gravidezes fora de tempo, agindo para que pais objetores de consciência possam impedir às filhas os conhecimentos indispensáveis para não contraírem doenças sexualmente transmissíveis nem engravidarem sem desejarem. (Aos rapazes também, claro. Mas, apesar de tudo, o conhecimento da existência de preservativos é mais generalizado. A sexualidade feminina é mais complexa. E os rapazes não engravidam.) 

O segundo reparo que faço é a hipocrisia. Objetam à Educação Sexual obrigatória. No entanto, a lei que a tornou obrigatória é de 2009. Segundo me lembro, entre 2011 e 2015 houve um Governo liderado por um senhor chamado Passos Coelho. Era presidente Cavaco Silva. Curiosamente, os mais sonantes signatários da petição. Curiosamente, quando lideraram a política nacional não fizeram nenhuma alteração legislativa tornando a Educação Sexual facultativa. Por que razão? Mudaram de princípios ou é só oportunismo pelas crescentes ideias ultraconservadoras da extrema direita? Ou não estão acima de usar temas essenciais para a educação dos jovens como arremesso da politiquice? 

O terceiro reparo é a mentira. O setor que pede – mas só agora que o Governo é socialista – Cidadania e Desenvolvimento facultativa garante que de modo nenhum querem privar os seus rebentos dos conteúdos. Até falam com eles em casa de tudo isso. Bom, é falso. Como é evidente, os pais não têm a informação necessária para transmitir os conhecimentos técnicos sobre sexualidade. Nem as mulheres, que normalmente estão a par do assunto contracetivos, têm informação que chegue para muito mais que uma conversa superficial. Ou formação pedagógica para transmitirem a dose de conhecimento certa a cada idade. Donde, o resultado seriam filhas e filhos obtendo a (des)informação através da pornografia da internet. 

O quarto reparo vai para a alegação de ideologia. Qual é a ideologia de informar que a homossexualidade não é uma doença? Qual a ideologia de explicar aos adolescentes como funciona o seu sistema reprodutor? Os ciclos ovulatórios das mulheres tornaram-se marxismo cultural? Em que parte é ideológico ensinar – de um assunto com abundante pesquisa científica – que os preconceitos de género são o fator determinante nos menores ordenados das mulheres e na sua exclusão dos lugares de poder? 

Ideológicos são os que se opõem à disciplina de Cidadania: pretendem manter as mulheres e os gays e os transexuais vítimas de discriminação e violência; insistem em controlar (pela ignorância e pelo medo de uma gravidez) a sexualidade feminina. Isto, sim, é ideologia – e da má. 

Só se compreende o argumento da ideologia na medida em que parte da direita atualmente vê as alterações climáticas como assunto ideológico. O uso das máscaras na prevenção do contágio da covid como promoção do totalitarismo. E mais uns tantos exemplos esotéricos. 

Não, não é ideologia informar os adolescentes sobre os seus corpos e a sexualidade saudável. É, pelo contrário, um direito deles que objeções de consciência parentais não podem varrer. Como também cabe no direito à educação serem expostos à necessidade de aceitação e tolerância do diferente, tanto de cor de pele como de orientação e identidade sexual. E ainda conceitos fundamentais como o que é o consentimento sexual. 

É este o meu quinto reparo: a desconsideração absoluta deste movimento conservador pelos direitos dos adolescentes e, igualmente, pelos direitos das mulheres e das pessoas LGBT – desde logo o direito de viverem livres de violência e usufruindo das mesmas liberdades e oportunidades. Felizmente, a sociedade civil já começou a responder e com as armas eficazes: números massivos (o manifesto pela Educação para a Cidadania em poucos dias tem mais de seis mil signatários) e a diversidade de sexos, de raças, de proveniências, de ideias políticas, de religiões, de idades que de facto espelha a sociedade portuguesa atual.» 

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