2.9.20

Velhos e pobres, o que fazemos com os lares?



«Todos os desenvolvimentos humanos, por mais positivos que sejam, têm efeitos colaterais negativos. Mesmo a entrada da mulher no mercado de trabalho, que lhe permitiu conquistar a liberdade que, lentamente, lhe deu domínio sobre a sua subsistência, o seu corpo, a sua carreira, a sua vida. Isso e muita luta, claro está. Um dos efeitos foi deixar de existir quem, em casa, ficasse a tratar da família. Sejam as crianças, sejam os idosos. Ninguém quer esse passado de volta.

Quem diz que as famílias abandonam os velhos nos lares fala de barriga cheia. Claro que há quem os abandone. Há até quem tenha sido abandonado pelos pais e tenha aprendido com eles. E há quem não tenha outra forma de fazer, quando tem de ganhar o pão de cada dia, casa pequena e muito pouco tempo. Quem faz julgamentos generalizados sobre o abandono de velhos esquece que muitos dos seus familiares foram abandonados com eles. E é bom perceber que o aumento da longevidade leva a que a vida não seja apenas mais longa, mas seja longa com doenças, deficiências, incapacidades e dependências, o que torna a ideia de que os cuidados a idosos possam ser uma responsabilidade solitária das famílias num mito irrealizável e numa fonte de sofrimento para todos, idosos, cuidadores outros familiares.

Na realidade, os portugueses abandonam menos os velhos nos lares do que muitos europeus. Não porque sejam mais solidários. Somos um dos países que mais maltrata os idosos e, na OCDE, dos que menor percentagem do seu PIB gasta com respostas de longa duração para eles. A razão é mais prosaica: mesmo com a comparticipação da segurança social, nem para abandonar os velhos em lares temos dinheiro.

Quando a ministra do Trabalho e Segurança Social sublinhou que tivemos menos mortes por covid em lares do que muitos países europeus faltou-lhe falar da nossa taxa de institucionalização. Os lares legais garantirão um pouco abaixo de cem mil lugares, e se a isso juntarmos os lares clandestinos deve aproximar-se dos 120 mil. Certo que só 13% dos nossos idosos têm apoio formal, seja em lar (legais), em centro de dia ou em apoio domiciliário. Ainda somos dos países que mais depende dos cuidados informais.

O que também quer dizer que se este país se desenvolver um pouco, e mesmo que outras soluções ganhem peso, teremos mais velhos em lares. Também é previsível que a média de idade da nossa população continue a aumentar. Isto criará pressão na necessidade de resposta em quantidade. Depois há a qualidade. A pandemia revelou a alguns distraídos que os lares são, em geral, maus. Se tudo correr bem, haverá cada vez mais pressão para que melhorem, nas suas condições físicas e no acompanhamento à saúde.

Os cuidados sociais não tiveram, quando foi escrita a Constituição, o mesmo tratamento que teve a educação e a saúde, mantendo-se sobretudo dependentes do sector social e privado, mesmo com subsídio do Estado. Nem nos primeiros anos da infância, nem na velhice. A questão não é apenas a de saber quem presta o serviço, mas se é dever do Estado garantir a sua universalidade. Para essa decisão talvez tenha pesado, na altura, a pressão da Igreja e das Misericórdias, que queriam garantir o seu poder na única área que lhes sobrava.

Só que mudou uma coisa: o envelhecimento da população, com cada vez mais doenças e incapacidades durante mais tempo de vida. Entre os utentes dos lares, metade tem mais de 80 anos. Neste momento, há lares a fazer as vezes de cuidados continuados: são hospitais de retaguarda, com doentes acamados, entubados, algaliados e totalmente dependentes. Segundo a Carta Social, cerca de 80% dos utentes dos lares não toma banho sozinho, mais de 75% não se veste sozinho, 60% é dependente na mobilidade e para ir à casa de banho, 60% sofre de incontinência e quase 40% não consegue alimentar-se sem apoio. E onde se faz a fronteira entre a manutenção da saúde de pessoas fisicamente dependentes e o trabalho social? Até há hospitais a fazer as vezes dos lares, com os internamentos sociais por não haver onde pôr as pessoas.

Mesmo com todo o empenho, o pessoal que trabalha em lares é pouco qualificado. Porque é muito mal pago. E mesmo assim, os lares são tão caros e estão tão lotados (mais de 90% de taxa de ocupação, obrigando muitos idosos a irem para lares fora do seu concelho) que abrem ao lado lares clandestinos, ainda piores, para um público com menos recursos. O que por lá acontece, nem sonhamos. E quando o Estado fecha um abre outro ao lado. Haja procura que vai sempre haver oferta.

A preguiça manda trocar a complexidade da solução de problemas complexos pela simplicidade do discurso moral. É disso que vive a indignação profissional. Neste caso, o problema até é simples: somos pobres e temos problemas de ricos. Não temos dinheiro para os lares mas já não temos as estruturas familiares de sociedades menos “desenvolvidas” (não cabe neste texto discutir o termo). Complexa é a solução.

Podemos discutir se queremos apostar mais no apoio domiciliário, semirresidencial e no apoio aos cuidadores informais. E, como imaginam, acho relevante discutir a eficácia (para além dos custos) de soluções públicas, privadas, privadas com apoio público ou do sector social com apoio público. Sendo para mim mais do que certo que o Estado está constitucionalmente obrigado a dar resposta às necessidades de saúde que ocupam uma boa parte do trabalho dos lares, isso dá-lhe um papel reforçado em todas as respostas. No fim, continuará a faltar lugar e apoio a muita gente, porque as nossas capacidades estão muito longe das nossas necessidades. Seja qual for o caminho não deixaremos de ter mais pessoas institucionalizadas e precisar de mais dinheiro. E se não queremos depósitos para velhos, os custos serão muito maiores por pessoa do que são agora.

Não é indiferente o modelo. Mas qualquer um deles, para ser decente, é muito mais caro do que aquilo que temos hoje. O que nos leva ao mesmo debate que temos sempre que falamos do envelhecimento da população: a sustentabilidade financeira. Os irados de Facebook (muitos coincidem com os que se opõem à imigração, que ajudaria a reverter a crise demográfica) falarão das mordomias dos políticos e da corrupção. Os que procuram soluções sabem que essa conversa fácil é fogo de artifício para esconder a falta de resposta.

Uns países criaram uma sobretaxa para pagar o internamento, outros têm sistemas de poupança obrigatória e penso que o Reino Unido até ponderou ir buscar às heranças os custos do Estado com lares. E há quem perceba que, tendo de se reforçar largamente a valência de cuidados continuados em todos os lares, estamos a falar de serviços de saúde e é discutível que isso não seja dever do Estado, como é o SNS. Seja qual for a solução, é preciso lidar com este facto: o de sermos um país pobre e envelhecido. Não há poema sobre a velhice, texto indignado com a indignidade dos lares ou saudades das mulheres cuidadoras sem vida própria, que ainda as há, que resolva isto. É de políticas públicas que precisamos.»

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