31.10.20

PS: A soberba não é boa conselheira

 


«Nos tempos de emergência em que vivemos, há três coisas fundamentais que podem e devem ser exigidas ao Orçamento do Estado para 2021. Que contribua para proteger a saúde de todos, que limite a magnitude da recessão e que mitigue os impactos sociais da crise. O primeiro objetivo exige o reforço do Serviço Nacional de Saúde, o segundo exige uma atuação contracíclica robusta para limitar a dimensão da recessão e o terceiro exige o reforço dos mecanismos de proteção social e regulação laboral. Independentemente das diferenças de identidade e programa entre os partidos à esquerda, deveria ser possível uma convergência em torno destes objetivos que permitisse a viabilização do OE. No entanto, o processo está a enfrentar contrariedades inesperadas e está mais em risco do que se anteciparia, e isso deve-se principalmente à soberba do Partido Socialista. 

Na generalidade, esta proposta de Orçamento contou para ser aprovado com a abstenção de PCP, PEV, PAN e duas deputadas não inscritas, tendo no entanto enfrentado o voto contra do Bloco de Esquerda. Tal como no passado, a reação do governo e do PS nos últimos dias passou por acentuar a diferença entre o pretenso bom comportamento do PCP e PEV e a pretensa traição inexplicável do Bloco, apresentada como uma colagem à direita. Enganam-se porém o governo e o PS quando interpretam a abstenção do PCP e PEV na generalidade como uma luz verde e o voto contra do Bloco como um cartão vermelho. Na realidade, ambos são cartões amarelos à disponibilidade negocial do governo, que apenas assumem formas diferentes devido aos diferentes tempos dos processos negociais entabulados com os diferentes parceiros negociais à esquerda. 

No meio do bullying político feito pelo PS contra o Bloco nos últimos dias, que chegou ao absurdo de Ana Catarina Mendes ter ontem à tarde acusado o BE de rejeitar um compromisso para o horizonte desta legislatura (quando toda a gente sabe que foi o PS, na arrogância do reforço do seu resultado eleitoral, quem matou a geringonça em 2019), o que o governo e o PS ainda não explicaram foi o seguinte: são mesmo contra uma dotação mais substancial da dotação orçamental e do quadro de pessoal do Serviço Nacional de Saúde (e não apenas do programa da saúde em geral, que compreende as transferências para os prestadores privados)? Não admitem mesmo a reversão da legislação laboral lesiva dos trabalhadores que resta do tempo da troika, contra a qual o próprio PS votou há poucos anos e que de uma forma geral não tem implicações orçamentais? Opõem-se mesmo a que o apoio social de emergência que está a ser desenvolvido seja mais abrangente e duradouro, como defende o Bloco? Se são realmente contra todas estas coisas, porque é que o são? Em vez de apresentarem estas reivindicações de esquerda como sendo de direita, podem explicar aos portugueses porque é que consideram que não devem ser atendidas? 

Quando o Bloco vota contra a proposta de OE na generalidade ao fim de três ou quatro meses de negociações, está a sinalizar que a intransigência reiterada do governo em relação a estas matérias não revela suficiente boa fé e disponibilidade para trabalhar em conjunto. Quando o PCP e o PEV se abstêm, estão a sinalizar a sua própria disponibilidade para prolongar na especialidade um processo negocial iniciado há menos tempo, mas que é para já insatisfatório nos resultados a que chegou. Se o governo e o PS continuarem a optar pela soberba, dando a negociação com o Bloco por encerrada, e considerando a abstenção viabilizadora do PCP e PEV como favas contadas, passará ao lado a oportunidade de construir um OE mais capaz de responder às preocupações de todos os parceiros às necessidades do país, e poderá mesmo acabar por não conseguir aprová-lo na votação final. O PS pode até ganhar a batalha do spin no curto prazo, mas perderão a esquerda, o governo e o país.» 

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