«Na entrevista que deu ao "Público", o epidemiologista sueco Johan Giesecke deixou alguns avisos interessantes. Não vou escrever sobre a “via sueca”. Como o próprio diz, saberemos no fim se com a sua estratégia terão números semelhantes aos nossos, sempre com o cuidado de não tentar fazer transposições para realidades económicas, sociais, institucionais e culturais muito diferentes.
Interessa-me o que Giesecke disse sobre a coerência do discurso e das medidas das autoridades suecas: “As restrições e recomendações foram instituídas em Março e não foram muito alteradas. Isso é importante para a forma como o público vê as recomendações e restrições. (...) Vários países impuseram o confinamento, depois abriram o confinamento e a seguir instalaram outra vez o confinamento. Isso confunde as pessoas.” Não há nada mais desgastante do que o confinamento intermitente e espero que nunca cheguemos a esse desnorte que alguns médicos, incapazes de compreender a gestão da psicologia coletiva, já propõem.
Sem ter voltado a confinar, a coisa mais evidente no discurso público tem sido o ziguezague. Inicialmente compreensível (seguimos todos esse estado de espírito), pela ignorância geral. Agora, é inaceitável. Só que a emotividade geral, que salta da euforia para a depressão, marca a nossa forma de estar no espaço público. Como canta Sérgio Godinho, vivemos “entre o granizo e a combustão”. E há, acima de tudo, pouca confiança nas instituições. E as instituições são, elas próprias, fracas. São fracas porque não confiamos nelas, não confiamos nelas porque são fracas. Tanto dá. Esta falta de confiança faz com que sejam elas a acompanhar os humores dos cidadãos. Não sei se a forma de estar dos escandinavos será excessivamente obediente, mas alguém imagina Portugal a aguentar o número de mortes que teve a Suécia e, mesmo assim, confiar no caminho que está a ser seguido? Nem durante uma semana.
A comunicação social contribui para esta impossibilidade. É absurda a rapidez com que se chega ao cume da histeria, com telejornais a anunciaram o caos com 135 pessoas internadas em UCI, em todo o país. Também não ajuda a overdose de covid. Mais uma vez, cito Johan Giesecke sobre os anúncios diários de número de infetados: “É demasiado aberto ao acaso. Os números sobem num dia e pensamos que fizemos algo de errado; noutro descem, também por acaso, e pensamos o contrário. Por isso, fazem-se associações aleatórias na narrativa. Seria melhor termos números uma vez por semana.”
Giesecke tem razão quando defende uma constância nas medidas de prevenção, que não salte do “vão todos para a praia” para o “vamos repensar o Natal”. Que mantenha medidas mínimas e praticáveis, suportáveis pela comunidade durante muito tempo, em vez das exigências irem acompanhando os estados de pânico ou de otimismo da opinião pública. Mas para isso ser praticável era preciso que não sujeitássemos as pessoas a um massacre psicológico diário a que qualquer comunidade acaba por sucumbir e que as pessoas confiassem nas instituições. Ainda assim, podemos tentar. Pedir o possível, mudar pouco, cumprir o pouco possível que é pedido. E baixar os índices de ansiedade.
É no contexto desta fraqueza das nossas instituições, da dificuldade em preparar o SNS e as escolas para a segunda vaga e de um ziguezague entre a dramatização e a desdramatização que surgem as propostas de ontem, com o regresso ao estado de calamidade. Elas seguem o tal movimento incoerente criticado por Giesecke. Era inevitável que o discurso da responsabilidade individual, que corresponde ao discurso da desresponsabilização do Estado, acabasse com o Estado a fazer o que lhe resta: controlar a responsabilidade de cada um.
Para mostrar serviço, chegássemos aos limites do exibicionismo desnorteado. As máscaras obrigatórias na rua, de necessidade discutível, até se tornaram secundárias perante a obrigatoriedade de uso da “Stayaway Covid”. Talvez tenha sido essa a sua função. Nenhum governo democrático pode tornar obrigatória a instalação de uma aplicação nos telemóveis de cidadãos, mesmo que seja em contexto laboral ou escolar, como foi anunciado que se vai propor na próxima quarta-feira. O facto da imposição ser impraticável na sua aplicação e fiscalização, não a torna menos grave. Torna-a apenas mais estúpida. Cria ruído sobre as medidas essenciais, banaliza a lei e viola princípios democráticos sem sequer conseguir mais eficácia por isso.
Mostrar-me-ão muitos números, fazendo por falar mais dos infetados do que dos óbitos. E eu responderei que morreram três mil pessoas nas Torres Gémeas e morrem muitos milhares de pessoas em todo o mundo às mãos de criminosos. E eu não deixo de combater os Bush e os Bolsonaros que por aí andam. Nem uma coisa nem outra me fazem abandonar valores democráticos fundamentais em nome da eficácia. Na sociedade livre onde eu quero viver, ninguém pode ser obrigado a instalar localizadores nos seus telemóveis. E não venham falar das apps que as pessoas voluntariamente instalam. Porque, lá está, é voluntário. Há limites para o show-off para conter danos políticos que qualquer governo sofre com esta pandemia. Esses limites são as portas que abrimos e que, diz-nos a História, nunca mais se fecham.»
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1 comments:
Do alto da sua evidente senilidade, Jorge Miranda, não vislumbra qualquer inconstitucionalidade na Proposta de Lei do governo. No que é seguido pelo ultra-reaccionário “constitucionalista” Jorge Bacelar Gouveia que se atreve a ir mais longe, afirmando que, para além de não ser inconstitucional, a Proposta se “justifica” pelo facto de estarmos numa situação de emergência e poder ser necessário “restringir alguns direitos e liberdades em prol da segurança”.
Miranda & Bacelar, uma dupla que, com a defesa destes pontos de vista, fazem corar de vergonha a mais reaccionária das figuras de proa do fascismo e da extrema-direita, a nível nacional, europeu e internacional. Como que a dizer “voltem Salazar, Pinochet e Hitler...que estão perdoados!”. Afinal, tal como afirmava o poeta romano Ovídio – e não Maquiavel a quem erradamente se atribui a frase, mas que certamente a subscreveria – os fins “justificam” os meios!
Já o constitucionalista Jorge Reis Novais, que considera a Proposta “inconstitucional e inaceitável” e violadora do direito à “privacidade e à liberdade dos cidadãos”, considera que a “utilização da aplicação por si não constitui uma violação da privacidade” mas que, coisa diversa, é a indicação expressa na Proposta de Lei do governo de que a fiscalização quanto a essa obrigatoriedade ficará a cargo das forças de segurança, o que viola de forma grosseira a privacidade e a liberdade dos cidadãos.
Segundo Reis Novais, “só num país autocrático é que seria possível os polícias pedirem os telemóveis às pessoas para as revistarem”. Insistindo no pressuposto de que estas aplicações digitais são criadas para serem usadas de forma voluntária, conclui que a obrigatoriedade do uso da aplicação Stayaway Covid “exigiria uma actuação de fiscalização do Estado que seria violadora da privacidade e da liberdade”.
José Preto, um eminente advogado português, que se tem destacado na luta pela Liberdade de Opinião e de Expressão, publicou no seu mural de facebook, uma nota assaz reveladora: “ O establishment deixou claro o que é a extrema-direita: são as suas cabeçorras e a gente a que chame sua.Da Liga Lombarda ao Vox e de Le Pen a Trump, nunca por tais cabeças lhes passou, sequer como projecto, esta devastação dos Direitos Fundamentais. Cai a inviolabilidade do domicílio, cai a reserva da vida privada, cai o sigilo das telecomunicações, cai o direito à identidade própria com a obrigatoriedade de ocultação da fisionomia, mas cai também o direito à assistência médica (com tratamentos de oncologia protelados por um ano) cai o direito a crescer em ambiente propício ao desenvolvimento equilibrado... Só gente de índole muito específica pode concretizar tais escândalos. Ninguém com convicções minimamente estruturadas o poderia ter feito. Nenhum militante, nenhum combatente de qualquer ideário faria tais coisas. Só nos chiqueiros de almazinhas servis poderiam conceber-se tais monstruosidades. Ruiu nos chispes soezes de tais criaturas a inteira civilização europeia.”
Por tudo isto assino por baixo
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