«Há quatro anos ouvi aquilo que pensei nunca ouvir: uma Nova Iorque completamente silenciosa. Era quarta-feira de manhã, dia de trabalho; mas o ruído constante que atravessa e acalenta a cidade tinha desaparecido. Como se alguém tivesse desligado o som da televisão e os nossos passos não fizessem barulho, saímos para o mundo tarde e caminhámos pela cidade em ressaca até nos juntarmos a uma dúzia de pessoas para o seminário que já estava marcado antes. Naquele dia um palestrante apresentava o resultado das suas investigações sobre como a Alemanha nazi se inspirou na legislação do Sul segregacionista dos EUA. No fundo, como os regimes autoritários se copiam uns aos outros. Mas de repente o tema tinha deixado de ser uma curiosidade histórica e, naquela tarde escura e fria, adquirira uma relevância sinistra.
Tudo começara quando? Talvez uns dias antes, quando fomos ver um dos mais conhecidos especialistas em sondagens e estatísticas eleitorais dizer-nos, debaixo do esqueleto de um dinossauro no Museu de História Natural, que Clinton já tinha ganho as eleições “a não ser que algo de muito estranho aconteça”.
Mas algo de muito estranho tinha já acontecido — e várias vezes até. Teorias da conspiração, apagões da internet, desinformação e delírios coletivos. Mas nada tão grave quanto a sensação sobranceiramente confortável de que “isto não pode acontecer aqui”. A ideia de que o povo dos EUA nunca elegeria um ser tão mentiroso e egoísta, tão impreparado e incompetente, foi a pior aliada dos democratas naquelas eleições. Os americanos, afinal, eram como todos os povos do mundo. Também elegiam demagogos e fanfarrões. A falta de imaginação foi a principal culpada do resultado. A credulidade foi a sua principal vítima.
A partir daí, os dias — e, na verdade, anos — seguintes foram de negociação com a incredulidade. As pessoas começaram a falar-se nos corredores e elevadores dos blocos de apartamento. Olhavam-se de soslaio, depois encolhiam os ombros, e depois diziam “dá para acreditar nisto? Como é que isto foi acontecer?”. Nos transportes públicos, gente com aquele ar de sinceridade diligente tão típico da América do Norte sobraçavam dossiês que lhes tinham oferecido lá no trabalho sobre “como lidar com o trauma pós-eleitoral”. O reitor da universidade escrevia-nos todos os dias, querendo saber como estávamos, oferecendo-nos os números das linhas de apoio psicológico, insinuando-nos que lhes devíamos fazer uma chamada, explicando-nos atenciosamente os passos que haviam sido tomados para pôr cobro à vandalização do ponto de encontro dos estudantes muçulmanos num dos edifícios do campus. As pessoas de minorias cerraram os dentes, prepararam-se para serem erigidas em bodes expiatórios por analistas de vários campos políticos, e tiraram os seus instintos de sobrevivência do armário onde nunca os tinham verdadeiramente esquecido. E um pouco por todo o lado percebia-se a gargalhada incontida daqueles que tinham querido ver acima de tudo aquele resultado: a incompreensão e o pânico entre os bem-pensantes e os bem-comportados. Um país lançado à instabilidade para chatear os progressistas.
Dez dias depois, a um sábado, há violência inesperada e repentina à porta dos bares e restaurantes. Gente assustada procura refúgio (e sentido para o que está a acontecer) nos prédios vizinhos ou nas redes sociais. Um grupo até então quase desconhecido de homens que glorificam a agressividade gratuita como uma forma de combater os seus fantasmas — o feminismo, o politicamente correto e a decadência do ocidente — concertou-se para atacar gente ao calhas nos bairros boémios da cidade. Não houve qualquer provocação para aqueles atos, apenas a necessidade de ir esmurrar uns quantos dos tais progressistas ainda baralhados com a vitória de Trump e mostrar-lhes quem mandava agora. A tensão nesses dias, e depois deles, não era uma coisa dos livros; era das ruas e era palpável. Esse grupo violento que apareceu então bruscamente ainda existe; foi a eles que Trump se dirigiu num dos recentes debates presidenciais, pedindo-lhes que “estivessem prontos, e a postos” para logo a seguir às eleições. A partir de hoje.
Se Trump perder as eleições de forma inequívoca que garanta a sua saída do poder sem causar muito mais dano, logo virão as análises que nos dirão que a democracia americana é afinal forte e que as suas instituições sobreviveram. Nada disso é verdade. A democracia americana não é nem forte, nem sequer muito democrática — e um dos seus dois principais partidos continua apostado em fazer com que assim seja. As instituições foram usadas a seu bel-prazer por Trump, com quase nenhuma resistência, e com o apoio servil do seu partido. E foi preciso a total incompetência na gestão de uma pandemia que já matou mais de 200 mil cidadãos dos EUA para que Trump chegasse a estas eleições no estado em que chegou. Um tirano um pouco mais metódico — um Putin, em vez de um Trump — teria devorado o governo dos EUA por tempo indeterminado.
E em rigor, à hora a que escrevo esta crónica, isso não é ainda impossível. Por isso, digam-me, vocês que sabem mais do que eu: como acordou a América hoje?»
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