«À medida que nos aproximamos do limite de capacidade das unidades de cuidados intensivos do Serviço Nacional de Saúde (e não serão seguramente as 112 camas de UCI dos privados, poucas delas disponíveis, que nos salvarão), a situação vai ficando mais desesperada. Sobretudo no Norte. Por mais severos que sejamos com o Governo, nem os médicos intensivistas se prepararam em meses nem Portugal tem um SNS pensado para ser o 15º país com mais casos de covid por cem mil habitantes.
Apesar de críticas que fiz e faço a várias decisões tomadas, sou muitíssimo sensível à situação que vivemos e ao escassear de soluções que atiram o Governo para medidas drásticas. Mas, mesmo que tenham de ser drásticas, as medidas têm de ser racionais. E a minha maior dúvida continua a ser em relação ao recolher obrigatório nas tardes de fim de semana. Porque ele tem um efeito indesejado e perigoso: concentrar na rua, nos supermercados, nos espaços de lazer e em todo o lado, toda a gente nas manhãs de sábado e domingo. Se juntarmos o recolher obrigatório nos dias de semana, será naquelas duas manhãs que se concentrarão imensas atividades de muitos portugueses. O que me parece o contrário do que se deseja. Outro efeito colateral é a última machadada na restauração e nas atividades culturais. Mas esse é outro debate.
O argumento para uma medida que parece contraintuitiva é que 68% das infeções acontecem em família e encontros sociais. Que é preciso impedir os almoços e jantares de família alargada, especialmente explosivos neste momento. Evidente. Mas aí, o problema com que nos deparamos é de rigor dos números para garantir medidas acertadas. Porque continua a não ser claro se os contágios dentro do agregado familiar que vive na mesma casa estão nestes números. E se estão, estes números são inúteis. Como é evidente, o contágio dentro do núcleo familiar que coabita é muito provável e comum.
O que precisávamos de saber é que peso têm estes almoços e jantares que se querem evitar. E não é picuinhice de quem quer ser esclarecido. É para ter a certeza que o problema que estamos a criar – concentração de pessoas nas manhãs de fim de semana – é muito menos grave do que aquele que queremos evitar. É só um exemplo de como é impossível tomar decisões acertadas sem recolha rigorosa de dados. Tem havido, aliás, muitas críticas sustentadas de cientistas à falta de rigor mínimo dos dados.
O que leva ao verdadeiro e mais grave atraso: a utilização de mais meios para o rastreamento, que só agora parece ser uma preocupação central. A recolha de informação é, num país pouco habituado a planear, bastante desprezada. Não apenas pelo Governo, mas por toda a gente. Por isso falamos sempre das carências de médicos, mas perdeu-se pouco tempo a falar da carência de pessoal para o rastreamento epidemiológico. Os primeiros servem para tratar, os segundos é que ajudam a tomar decisões certas para prevenir.
Dito tudo isto, as dúvidas não impedem o respeito pelas decisões tomadas. A liderança do país é democrática e as medidas anunciadas estão dentro dos limites do que se autoriza um Estado de Direito a decidir durante uma pandemia ao abrigo do Estado de Emergência. Sendo certo que o sentido critico não infeta ninguém.»
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