«A atenção dos cidadãos é, talvez, o produto mais valioso do mundo, como refere Tim Wu num livro cuja tradução em português corresponderia ao título deste artigo. Em meados do século XIX, percebe-se que seria possível atrair e vender a atenção dos consumidores, cobrando-a aos fabricantes que quisessem publicitar produtos junto destes. Assim nasceu o marketing, que se foi progressivamente adaptando aos novos media, primeiro os jornais e o correio, depois a rádio e a televisão e, agora, a Internet. Ao princípio, o marketing foi usado principalmente para vender (falsos) remédios e mezinhas, mas rapidamente se expandiu e passou a representar uma parte significativa da actividade económica e política.
Que o valor da nossa atenção é enorme é atestado pelo facto de as empresas que a comercializam serem, neste momento, as mais valiosas do mundo, com capitalizações bolsistas que, para as quatro primeiras (Apple, Microsoft, Amazon, Alphabet-Google) excedem em muito o bilião de dólares, seguidas pelo Facebook com um valor de aproximadamente 750 mil milhões de dólares. É por esta razão que as televisões, as rádios, os jornais, as redes sociais e os sites na Internet tudo fazem para prender a nossa atenção, apresentando conteúdos que maximizam o tempo que dedicamos a cada plataforma. Nos dias que correm, poucos media se podem dar ao luxo de apresentar visões equilibradas e profundas dos temas importantes. Para cativar a nossa atenção, é necessário apresentar aquilo que cada pessoa prefere ver, ler ou ouvir, o que conduz ao reforço das opiniões preexistentes, à criação de bolhas onde apenas se é exposto a um dos lados das questões e à radicalização das opiniões políticas, sociais e económicas.
A pandemia, com a sua mistura de novidade, mistério e perigo, tem os ingredientes para atrair, como poucas outras coisas, a nossa atenção. Temos assistido assim a um foco quase total dos media, e das redes sociais, nos assuntos relacionados com a pandemia, em detrimento de um tratamento de outras questões que são tão ou mais importantes no médio e longo prazo, como o aquecimento global, o crescimento das desigualdades ou os riscos para a saúde causados por diversos comportamentos comuns. As redes sociais e os media encheram-se de discussões acaloradas e mesmo violentas sobre a evolução da pandemia, que capturam e monopolizam a atenção de milhões de portugueses. Porém, uma análise objectiva do real impacto da pandemia na mortalidade não torna imediatamente claras as razões para este foco total e completo nesta única questão.
Foram atribuídas à covid, até ao dia 30 de Outubro, um total de 2507 mortes, um número necessariamente sujeito a dois tipos de erros: existem pessoas vitimadas por outras doenças que foram contabilizadas como covid simplesmente porque testaram positivo e podem existir vítimas de covid que não foram registadas como tal. Admitindo que estas duas fontes de erro se cancelam aproximadamente uma à outra, uma vez que nunca saberemos os verdadeiros números, concluímos que a covid causou cerca de 2,5% do total de mortes registadas este ano no país até à data, que foi de 98.784. É certo que esta percentagem irá, quase de certeza, aumentar com a segunda vaga. Apesar disso, o foco quase total dos media e das redes sociais numa questão que foi responsável apenas por uma pequena percentagem das mortes registadas pode parecer estranho. É certo que cada morte é uma tragédia, para o próprio e para os que lhe são próximos. E pode argumentar-se que estas mortes são anormais, por comparação com as outras, que são as previsíveis e expectáveis. Mas esta distinção não é de forma alguma clara e a real explicação é a necessidade permanente que os media têm de prender a nossa atenção com algum assunto, neste caso a pandemia.
Para além das mortes causadas directamente pela covid, existe algum excesso de mortalidade em Portugal, em 2020. Dada a tendência existente para o aumento de mortalidade em Portugal a cada ano que passa, devido principalmente ao envelhecimento da população, é necessário tomar em consideração que, no último quinquénio, o número de mortes tem crescido a um ritmo de aproximadamente 1% ao ano. Tendo em atenção esta tendência e corrigindo também os números pelo facto de 2020 (e 2016) ser bissexto, conclui-se que este ano, até 30 de Outubro, faleceram em Portugal cerca de 4500 pessoas além do que seria previsível. Um estudo, publicado pela OCDE em 16 de Outubro, mostra que Portugal é o país com o maior rácio entre o excesso total de mortes e o número de mortes por covid no período crítico de 10 semanas da primeira vaga, de entre todos os países analisados com um excesso superior a 10% nesse período. As mortes por covid explicam apenas cerca de metade do excesso de mortalidade observado, sendo o restante, para além de variações causadas por questões meteorológicas ou ambientais, devido a três causas principais.
Uma primeira causa é a eventual saturação dos serviços de saúde em algumas alturas do ano, que poderá ter impedido que fossem devidamente tratados ou acompanhados pacientes com outras condições. Uma segunda causa é o foco do Serviço Nacional de Saúde na covid-19 que terá conduzido, preventivamente, à desmarcação ou adiamento de consultas e tratamentos, reservando capacidade para o apoio ao expectável aumento de pacientes covid. Uma terceira causa são as decisões que muitas pessoas poderão ter tomado de não se deslocar a hospitais ou serviços de saúde, com medo do contágio.
Para além de criar as condições para que o tratamento aos doentes com covid seja tão eficaz quanto possível, é necessário também evitar mortes desnecessárias por outras causas. O Ministério da Saúde e os hospitais deverão tomar as medidas possíveis para aumentar a capacidade do sistema por forma a que a não se venha a atingir a saturação, sendo fundamental que exista coordenação entre as diversas unidades. É também importante que o eventual adiamento ou desmarcação de consultas não-covid tenha o menor impacto possível na saúde dos pacientes, o que exige dos serviços médicos um planeamento o mais eficaz possível. Finalmente, é necessário que ninguém deixe, por medo da covid, de procurar tratamento ou acompanhamento para condições relevantes.
É aqui que o excessivo foco dos media no covid pode vir a revelar-se um factor de risco, que poderá ser comparável ao risco já relevante do covid. A barragem de cobertura mediática a tudo que é relacionado com o covid, que tem como principal objectivo prender a nossa atenção, não cria as condições para que se possam tomar serenamente as melhores decisões. Uma vez que a pandemia continuará entre nós por um período prolongado, é importante conciliar a retoma de alguma normalidade na forma como esta questão é tratada nos media com a sensibilização da população para a adopção de medidas que permitam reduzir o mais possível o crescimento do número de casos, tais como o uso de máscaras, o teletrabalho, a proibição de ajuntamentos, e as restrições à mobilidade.
É injustificável que se continue a tentar prender a nossa atenção com as conferências de imprensa usadas para reportar diariamente o número de mortos por covid e de novos casos detectados, para além de outros números irrelevantes e sem real significado, como o número registado de recuperados ou o número estimado de casos activos. Este foco único numa questão que não é o único desafio sério que o país enfrenta contribui muito para a manutenção de um clima de pânico generalizado e pouco para que a população adopte as necessárias medidas de contenção.»
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