6.12.20

Com a vacina à vista, é estúpido morrer na praia

 


«Estamos a entrar numa nova fase que muda radicalmente a nossa perspectiva sobre a pandemia da covid-19. Não eliminará os constrangimentos que fomos forçados a adoptar para nossa defesa. Mas Dezembro de 2020 é uma linha divisória. Há um antes e um depois que, embora parecidos, têm um significado desigual. Saímos de uma fase defensiva, e algo cega, para entrar numa outra, em que passa a haver uma perspectiva. Será um tempo mais exigente, para os cidadãos, para a política e para os governantes. 

A questão chave é que a chegada das vacinas não é o fim da pandemia, nem da recessão económica, nem das restrições a que estamos submetidos. A vacina é apenas um primeiro passo. O que é relevante é que desencadeia um novo processo. 

O desafio político é agora prevenir o cepticismo ou a frustração dos que esperam uma imediata vitória sobre a pandemia. O cansaço das restrições vai acentuar-se, como efeito indirecto das expectativas criadas pela notícia das vacinas. Avisam os cientistas: não podemos baixar a guarda. Este Natal vai ser um teste. Agora, que há uma sólida esperança, seria estúpido morrer na praia. 

Em 31 de Dezembro de 2019, a China comunicou à Organização Mundial da Saúde a existência de uma pneumonia de causas não identificadas. Seguiu-se uma devastadora pandemia. Onze meses depois, num espantoso salto em frente da ciência e da tecnologia biológica, o coronavírus foi identificado, estudado e surgiram vacinas que se prevêem eficazes. Vacinas produzidas e testadas em menos de um ano e não nos cinco ou dez habituais. É uma prodigiosa aventura da investigação e da indústria. 

A confiança 

Governos e responsáveis da saúde terão de explicar aos cidadãos que se inicia um combate de longo fôlego. Muitos esperam que, iniciada a vacinação, sejam levantadas as restrições – recolher obrigatório, condicionamento de viagens, normalização dos horários comerciais ou da vida nocturna. 

Mas a máscara e a distância social continuarão a limitar a nossa “vida social”. Suportaremos, por tempo ainda indefinido, a privação do contacto físico e a mutilação das nossas redes de relações. A limitação à conversa electrónica continuará a empobrecer-nos. A vida cultural está profundamente ferida. 

Antes de Dezembro, isto tinha um sentido deprimente, era o último e frágil recurso de defesa perante a “peste”. Hoje, com a vacina, ganha outro sentido: é a janela por onde poderemos vislumbrar a saída da crise. Há, enfim, uma meta à vista. 

Muitos dos novos hábitos vieram para ficar. O comércio digital está a expandir-se e o teletrabalho vai em grande medida permanecer. Surgirão graves problemas na criação de empregos ou na requalificação dos trabalhadores. A pandemia desencadeou um processo de destruição criadora. Mas, primeiro, destrói. 

Não haverá regresso automático à “normalidade” de 2019. A simples descoberta deste facto, de que hoje há uma consciência muito ambígua, criará frustração e tensões sociais. Caberá ao poder político falar com rigor e seriedade aos cidadãos, enquanto dos media se espera realismo perante as expectativas. A questão da confiança é agora mais importante que na fase anterior. 

Exasperação 

Os cientistas ainda não conhecem todas as virtualidades e limites das vacinas. Não sabemos por quanto tempo garantem a imunização, nem a medida em que anularão os riscos de contágio. As campanhas de vacinação serão longas. Mesmo começando em Janeiro, os europeus terão de esperar meses, talvez muitos meses. Haverá conflito sobre as prioridades. A vacinação tenderá a ser desigual, em termos sociais e geográficos. A logística de uma vacinação em massa é um gigantesco empreendimento, que exige extrema competência. Ninguém perdoará os erros. 

Num artigo recente, dois investigadores da universidade Johns Hopkins, Josh Michaud e Jen Kates, fazem o balanço dos muitos obstáculos a vencer e tiram algumas conclusões. “Como resultado, o risco de surtos continuará depois de ser posta em marcha a primeira geração de vacinas. As medidas de distância social, o controlo das fronteiras e outras formas de intervenção pública deverão permanecer por muitos meses. É possível que se siga uma desilusão, especialmente em relação às desigualdades na saúde, que se tornarão mais visíveis entre países e dentro do mesmo país” (Foreign Affairs, 2 de Dezembro). 

Acrescentam: “Estas frustrações populares podem agravar o cepticismo sobre as vacinas e fomentar uma ainda mais perigosa desinformação, complicando os desafios dos programas globais de imunização.” 

Europa 

Ao contrário da maioria dos asiáticos, os ocidentais, europeus ou americanos, não souberam prevenir a segunda vaga da pandemia. Após um êxito inicial foram tentados a baixar a guarda. As populações estariam saturadas. A economia não devia permanecer parada. O relaxamento no Verão foi fatal. 

No entanto, a literatura científica era clara: o regresso precipitado a uma relativa “normalidade” antes de haver uma vacina provocaria o retorno da pandemia numa forma mais agressiva. 

O escritor italiano Daniele Rielli contesta o argumento da economia: “A escolha entre saúde e economia é um dilema mal formulado porque uma gestão prudente da economia, sem as loucuras e o laxismo estivais, talvez com um breve confinamento de duas semanas em Outubro, teria sido muito melhor para a economia.” 

Ao contrário do que alguns anteciparam, a China não ganhou a “batalha das vacinas”. Pode ter muitos clientes e marcar pontos. É possível que as vacinas chinesas e russas venham a mostrar-se eficazes. Mas a falta de transparência e o desrespeito das regras de certificação feriram a sua credibilidade científica. Neste terreno, ganharam americanos e europeus. 

O que a China e a Ásia estão a ganhar é a batalha da recuperação económica. A retoma do crescimento acelera-se no Extremo Oriente, em parte arrastado pela China. A América está a meio caminho. Na cauda, está a Europa. A Alemanha e França fecharão o ano com números negativos. Um factor decisivo será a capacidade europeia de lançar uma vacinação em massa. A eclosão de uma terceira vaga ser-nos-ia fatal. 

Os governos têm pela frente tremendas tarefas com as campanhas de vacinação e um duro Inverno em perspectiva. Os próximos meses podem ser terríveis. A única forma de responder à exasperação popular é uma relação de confiança. 

Aos cidadãos cabe perceber que, agora, é a vez de assumirem um papel activo no combate à covid. Repito: seria estúpido morrer na praia.» 

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