«Com o levantamento da cerca sanitária, a situação em Odemira tenderá a sair da agenda. O problema de fundo, contudo, persistirá. Mesmo se fosse possível resolver todos os casos de abuso no trabalho ou até eventuais situações de escravatura laboral e de tráfico de pessoas, o crescimento para lá do razoável da agricultura intensiva continuaria a colocar uma pressão incomportável sobre o território.
Há dias, o Presidente da República afirmava que “a sociedade prefere ver a ponta do icebergue em lugar de discutir a parte fundamental, as condições sociais”. A questão é essa, mas, na verdade, não é essa. Em Odemira, os problemas sociais persistirão, a menos que se repense o equilíbrio entre a aposta necessária numa agricultura mais moderna e um território que é um recurso ambiental de valor inestimável. Nos últimos tempos, esta relação desequilibrou-se, provocando problemas sociais.
Não é possível um concelho com cerca de 25 mil habitantes, com serviços públicos escassos e um parque habitacional subdimensionado albergar uma população migrante que se estima superar os 10 mil trabalhadores sazonais e tenderá a crescer muito. Em abstrato, até se podia pensar em fazer de Odemira um grande parque agrícola, mas numa região atravessada por um parque natural seria um absurdo e uma ameaça ao património ambiental.
E o absurdo nasce também da resolução do Conselho de Ministros aprovada há dois anos e que enquadra a exploração agrícola nos 12 mil hectares do perímetro de rega do Mira. Uma resolução que se propunha promover uma solução temporária para o alojamento (os muito propalados contentores) e fixar a área passível de ser ocupada por estruturas de cobertura.
De acordo com a resolução, 40% dos 12 mil ha podiam ser dedicados à exploração em estruturas cobertas. Ou seja, com esta decisão, é possível ter 4800 ha de agricultura em estruturas cobertas. Em 2013, estas estruturas ocupavam cerca de 400 ha, atualmente ocupam 1600 ha, e o ritmo de crescimento anda em redor de 15% ao ano. Neste momento, são necessários mais de 10 mil trabalhadores, imagine-se quando atingirmos os 4800 ha permitidos. Uma situação social ingerível.
É neste contexto que surpreende a interpretação que o ministro do Ambiente fez da resolução em vigor. Segundo Matos Fernandes, “a área de estufas não pode ter mais de 40% da parcela de cada propriedade”. Em que é que ficamos? Afinal, são 40% de cada parcela ou, como era o entendimento até aqui, 40% da área do perímetro de rega do Mira? Se for levada a sério a declaração do ministro, quase todas as explorações com estas estruturas criadas após 2019 são ilegais, pois ocupam muito mais do que 40% das parcelas onde se inserem. Ou os vários organismos da Administração Pública se entendem e o Governo clarifica a sua posição ou brevemente o país será confrontado com um icebergue na sua totalidade. Não será por falta de aviso.»
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