«Colecionar luso-descendentes para colar na caderneta “Portugueses Famosos no Estrangeiro” é um dos passatempos preferidos do país. Quando, ainda por cima, juram que têm Portugal na alma, é ver o ego nacional a inchar. No fundo, todos sabemos que o seu sucesso resulta de uma árvore genealógica com um ramo neste canto da Península Ibérica. Não tivesse pais açorianos e Nelly Furtado nunca teria produzido ‘I’m Like a Bird’, uma das músicas mais pegajosas do virar do século XXI. Antoine “Lopes” Griezmann só é uma das estrelas da seleção francesa porque o avô jogou no Paços de Ferreira. Quando tira o nosso passaporte da gaveta para servir a mãe-pátria, o luso-descendente é tratado como o filho pródigo que voltou a casa. Onde os pés de Raphaël Guerreiro ou as mãos de Anthony Lopes tocam numa bola está plantado um comentador emocionado com o regresso da nossa diáspora.
Se rebentamos todos de orgulho com quem faz gala da sua ascendência portuguesa, nem todos apreciam que sejam para aqui chamadas heranças alheias, sobretudo se forem mais escuras. A visão de uma bandeira da Guiné nos festejos da eleição de Joa¬cine Katar Moreira causou vários ataques de apoplexia. Até Patrícia Mamona, a atual detentora da medalha de prata olímpica no triplo salto, ressente-se de muitos não a considerarem uma portuguesa a sério por ter ascendência angolana. E, enquanto recebemos de braços abertos os filhos de emigrantes que jogam na seleção, o nosso primeiro instinto perante um estrangeiro naturalizado que queira fazer o mesmo é desconfiar. Quando os brasileiros Deco e Pepe viraram portugueses para marcar golos por Portugal, foi-lhes rapidamente explicado que o amor à pátria é muito bonito, sim senhor, mas guardem lá isso para o vosso país de origem.
O último suspeito de apresentar níveis deficientes de portugalidade é Pedro Pichardo, o atleta que, depois de abandonar Cuba, se fez português em 2017 e acabou de ganhar nos Jogos Olímpicos a medalha de ouro no triplo salto. Por mais que o homem se esforce por falar português e cantar o hino, elogie o clima ameno, faça referência à filha nascida em solo nacional e garanta que até vê jogos do Benfica, muita gente continua a medir com suspeição o seu índice de lusitanidade. Tudo bem, ganhou uma medalha de ouro que nos ofereceu em sinal de agradecimento, mas olhando bem, com olhos de ver, a coisa é capaz de não ser assim tão portuguesa.
Caso o “Portugal Total” dependa de uma formação apenas em instituições com certificado de autenticidade lusa, como defende o candidato da CDU à Câmara de Aveiro, nunca produzi nada made in Portugal. Com toda a escolaridade feita em escolas públicas francesas, obter um 100% está fora de questão. Também devo chumbar nos testes de nacionalismo mais exigentes que o Chega gostava de aplicar a quem pretende naturalizar-se português. Consigo debitar mais reis franceses do que portugueses, tenho dificuldade em reduzir Napoleão a um facínora que pôs o país a saque e continuo a achar que chamar croissant à massa de brioche vendida por aí é publicidade enganosa. Durante o último Euro, fui, inclusive, acusada de cantar ‘A Marselhesa’ com mais convicção do que ‘A Portuguesa’ — o que, dizem-me, é matéria para crime de alta traição.
Só que a mim ninguém me pergunta nada, sendo certo que também nunca produzi nada de muito relevante, quanto mais ouro olímpico. Mas também ninguém questiona o índice de nacionalismo dos jogadores de futebol que aproveitaram ter pais portugueses para trocar França por Portugal. Já Pichardo é obrigado a repetir declarações de gratidão, rejeitar energicamente qualquer ligação ao Estado cubano e sujeitar-se a uma verificação constante dos seus progressos no portuguesismo — ao princípio, péssimo sinal, não apreciou muito esta mania do bacalhau; agora está bem melhor, até diz que só lhe apetece comer um bom bacalhau à Brás.
Perante a lei, tanto podem ser nacionais portugueses os luso-descendentes como, preenchidas certas condições, os que nascem em território português ou aí residem há mais de cinco anos. No caso de Pichardo, foi aplicada uma norma especial que permite atribuir a nacionalidade a quem seja chamado a prestar um serviço relevante à comunidade nacional — conseguir saltar mais de 18 metros e ter uma medalha de ouro olímpico é capaz de ser suficiente para preencher esta regra. Portugal também convive pacificamente com a dupla nacionalidade desde 1981, estando ultrapassada a ideia de que, como ninguém pode servir dois senhores, ninguém pode ter dois países.
Nada disso impede muitos portugueses de continuarem a privilegiar, por sistema, a origem portuguesa e a exigirem que as ligações ao estrangeiro sejam, no mínimo, camufladas. Acumular uma origem portuguesa com uma nacionalidade estrangeira é motivo de orgulho; declarar-se português e orgulhar-se de uma ligação ao estrangeiro é crime de bigamia lesa-pátria. O passaporte português de um luso-descendente é uma continuação natural do álbum com fotografias dos avós e da casa de férias em Ponte de Lima. O mesmo passaporte nas mãos de um estrangeiro só pode ser um livre-trânsito para se aproveitar de nós. Daí a exigência de declarações de dedicação exclusiva a Portugal e o “esqueçam lá esse sítio de onde vieram” — ou de onde vieram os vossos pais.
“At Home in Two Countries” é o título de um livro escrito por um professor de Direito norte-americano, Peter J. Spiro, onde este estuda a história e a situação atual da dupla nacionalidade. Ter mais do que uma nacionalidade é o melhor exemplo da possibilidade de estar em casa em vários espaços nacionais. Sendo Portugal um país de emigrantes, isto devia ser óbvio. Em vez de duvidar da real integração de Pichardo no país onde vive, devíamos lamentar que não possa voltar ao país onde nasceu e perguntar-lhe como se vai manter cubano enquanto aprende a ser português. Um processo normalmente bastante mais rápido do que muitos parecem achar, como pode atestar quem me apanhou em 1977 a torcer pela vitória da canção francesa na Eurovisão — em minha defesa, a cantora era a luso-descendente Marie Myriam. É perfeitamente possível vibrar mais com o “allons enfants de la Patrie” do que com os nossos “egré¬gios avós” e, mesmo assim, odiar todos os franceses quando conseguem eliminar a seleção nacional.»
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