16.8.21

Os gritos negacionistas parecem vindos do passado mas podem ser o futuro



 

«Já tinha transmitido as dúvidas de boa parte dos pediatras quanto à necessidade de vacinar menores de 16 anos. Na última sexta-feira, manifestei a minha preocupação pela forma como a DGS mudou de posição, depois de pressão política, dava “lastro aos negacionistas” e dificultava o futuro. É tentador dizer que a premonição se confirmou de imediato. Mas seria dar demasiada relevância a um grupo que é, felizmente, francamente minoritário em Portugal. E sabemos porque os antivacinas são mais fracos por cá do que no norte da Europa: a memória de um tempo em que se morria por pouco ainda está demasiado próxima. Lembramo-nos, pelo menos de ouvir desgraças do passado dos nossos avós ou pais, o que devemos à medicina. A recusa da ciência é uma miséria da ignorância ou um luxo do conforto desmemoriado. Como em muitas coisas, nós ainda estamos no meio.

Os negacionistas aproveitam todas as falhas das autoridades. Os antivacinas souberam, no passado, aproveitar a falta de transparência. Os teóricos da conspiração aproveitam a ganância da indústria farmacêutica. Uma e outra coisa são reais. Mas, verdade seja dita, não precisam de nada para se alimentar. Uns estão fechados nas bolhas de desinformação que as redes sociais promovem. E os que os alimentam fazem-no por má-fé e não precisam de erros para fazer crescer a mentira.

O problema nunca foi a vacina. Há dois anos era porque isto era uma gripe sem importância. 4,4 milhões de mortos depois, ou os óbitos não são de covid ou passaram para novas trincheiras sem perderem tempo com a revisão da matéria dada. Não querem restrições porque amam a liberdade. Não querem a máscara que pode evitar algumas restrições porque não são do rebanho. Não querem as vacinas que salvam vidas e aliviam hospitais porque são os mais esclarecidos. São irredutíveis porque recusam a realidade. Saltam de negação em negação, num jogo do gato e do rato. Criam uma avalanche de desinformação impossível de contrariar. E, no fim, piscam os olhinhos de bons cidadãos e explicam que só têm dúvidas. Que são apenas mais exigentes do que os outros. Seguem a primeira mentira que se lhes põe à frente mas sentem-se, orgulhosos, homens e mulheres extraordinariamente livres.

Quem tem dúvidas pergunta a quem sabe. Quem insiste nelas é porque se baseia, com humildade, em debates realmente existentes (e relevante) entre cientistas que não usam vídeos de YouTube ou páginas obscuras na Internet para dirimir as suas divergências. Quem não está habilitado para debates científicos (eu não estou) concentra-se na discussão sobre a ponderação de valores. Porque isso sim, ultrapassa a ciência. E quem contesta medidas propõe outras em alternativa.

Quem mais me irrita são os que mascaram tudo isto com um suposto combate à ganância da indústria farmacêutica e do capitalismo. Querem combate-la? Batam-se pelo levantamento das patentes. Defendam o progresso científico como um bem comum, não o obscurantismo contra a ciência.

A imagem de gente possuída por um ódio absurdo a insultar o coordenador da vacinação contra uma pandemia deve ficar-nos na cabeça. Em Portugal ainda são poucos, mas em países em que a ausência de cuidados de saúde se perde mais na memória são muitíssimo mais. Com a destruição dos mediadores que tornam a vida em comunidade e em democracia possível, a desinformação ganhou instrumentos que nunca teve. Vivemos tempos de retrocesso. Esta pode ser a última pandemia que conseguimos vencer. Isto, partindo do princípio que a ganância do mundo rico que priva de vacinas os países mais pobres não nos está já a condenar à derrota.

O caos que se instala não é inocente. Ele abre alas a homens providenciais que nos salvarão do medo e do desespero. Quem trabalha para que nenhuma autoridade científica, técnica ou política seja aceite não quer apenas o caos. Quer a ordem autoritária que a ele sempre se segue. Aqueles gritos tresloucados que chamam assassino a quem trabalha para salvar vidas parecem vindos do passado. Mas são um aviso para o futuro. Recusarmos um debate sério sobre a regulação dos instrumentos disponíveis à desinformação é condenarmos à morte os valores da liberdade que queremos defender. Não existe liberdade sem regulação. A isso voltarei um dia destes.»

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1 comments:

brancas nuvens negras disse...

Estou totalmente de acordo com o que deixou dito, é um excelente texto. Muito obrigado.