«O anúncio da construção de um hospital privado em Beja retoma a discussão sobre os papéis do sector público e do sector privado na prestação de cuidados de saúde à população. É do conhecimento geral que a actividade lucrativa da saúde não desistirá de se expandir, sobretudo na área hospitalar, enquanto não reduzir a prestação pública à vocação de prestadora dos cuidados que para ela tenham uma margem de lucro desprezível. Há muito que este objectivo foi enunciado pelo presidente da associação dos prestadores privados, e o projecto de Beja é só mais um sinal dessa intenção.
Actualmente, o volume de estabelecimentos hospitalares privados e de camas já é superior aos do sector público (114/111 hospitais e 11.281/10.863 camas) (www.jornaleconomico.pt), os meios complementares de diagnóstico e terapêutica também são dominantes nesse sector, ocupando, por isso, estas duas áreas posições estratégicas quanto à política de saúde do país. Será por esta razão que a CIP fez recentemente exigências ao governo para que em sede do Orçamento do Estado para 2022 aumentasse o orçamento da saúde de maneira a fazer face às novas tabelas dos preços praticados aos beneficiários da ADSE. São para cima de 600 milhões de euros anuais que estão em jogo, e a representante dos patrões não quer deixar para outros o que pode conseguir para si.
Se a aprovação da Lei de Bases da Saúde, apesar do processo conturbado e quase dramático por que passou, nomeadamente na Assembleia da República, representou um passo importante na salvaguarda do SNS, ficar-se por aí era o mesmo que, tal como actualmente a situação se apresenta, o Estado ficar proprietário da designação mas renunciar ao recheio do SNS a favor do sector privado, alugando ou vendendo o seu património. No melhor dos casos, como já muitas vezes foi dito, reservando-o para aquela faixa da população que não está coberta pela ADSE nem tem acesso a um seguro de saúde. São conhecidas as consequências desta escolha. Está, por isso, em causa o volume de financiamento, da remuneração dos seus profissionais e da sua organização e funcionamento. E tudo isto deve estar contido no Estatuto do Serviço Nacional de Saúde. Adiar por mais tempo a sua aprovação, materializando os princípios e orientações da Lei de Bases, é dar um sinal de hesitação quanto ao que fazer, cuja interpretação acaba sempre por ir mais além do que as eventuais precauções que se queiram ter.
A recente nomeação de coordenadores e equipas de apoio para as áreas dos cuidados de saúde primários, dos cuidados hospitalares, dos cuidados continuados e dos cuidados paliativos (despacho 9016/2021), à semelhança do que tem vindo sucessivamente a acontecer desde há alguns anos a esta parte, é a replicação do entendimento que se tem vindo a ter do que é a prestação de cuidados de saúde. Esta perspectiva, cujo êxito fica sistematicamente comprometido por lhe faltar uma visão sistémica de conjunto, é a transposição para a estrutura do SNS do que são os vários estádios da doença, compartimentados e alienados do que se passa ao seu lado. São os equivalentes a edifícios de várias alturas e volumetria que se erguem num terreno onde os acontecimentos vitais que lá se passam são de natureza particularmente complexa, a exigir menos fronteiras e mais liberdade de comunicação e contacto.
Nesta medida, o Estatuto perfeito será aquele que valorize e dê prioridade à promoção da saúde e à prevenção da doença, que retarde e diminua a gravidade da doença, aspectos descartados pelo sector privado por não terem um retorno financeiro de curto prazo e suficientemente robusto. O Estatuto perfeito será aquele que dê garantias que as pessoas são cuidadas pelo SNS desde que nascem até que morrem. O Estatuto perfeito será aquele que abandona a visão sectorial da prestação de cuidados e abre as portas à cooperação dentro e fora dos seus muros, considerando que todos os actores sociais são parceiros potenciais da política de saúde. O Estatuto perfeito será aquele que autoriza o SNS a expandir as suas acções muito para além das paredes dos seus estabelecimentos, assentando arraiais nas comunidades; só assim pode ser apropriado por essas comunidades e responder atempadamente às suas dores e contribuir para preservar o seu bem-estar. O Estatuto perfeito será aquele cuja abrangência e exaustividade sirva para melhorar a saúde das pessoas, individual e colectivamente consideradas; será o conjunto de regras que faça a diferença, para melhor, do recurso ao sector privado. O Estatuto perfeito será aquele que cuida dos seus profissionais, os remunera convenientemente, lhes proporciona formação contínua e lhes garante o acesso à tecnologia indispensável para tratar convenientemente quem está doente. O Estatuto perfeito será aquele que permita ao SNS adaptar-se facilmente às variações epidemiológicas, às circunstâncias sociais e às alterações demográficas. O Estatuto perfeito será aquele que exigirá que do topo à base todos os seus dirigentes partilhem dos valores do SNS, se dediquem exclusivamente a ele, sejam capazes e competentes, tenham o espírito de missão e de serviço à causa pública.»
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