23.9.21

Uma incompreensível suscetibilidade



 

«É claro que boa parte dos cidadãos não se dá conta. Até porque sempre conheceu esta maneira de funcionar. Mas há também quem frequente rádios e televisões de outros países europeus. Ou que tenha vivido longos anos longe, sem contactos durante muito tempo com as estações portuguesas. E que, por isso mesmo, saiba comparar com outras maneiras de produzir entretenimento como informação. O que leva naturalmente a uma atitude crítica para com o que rádios e televisões propõem em Portugal.

Tal atitude manifesta-se sobretudo em relação à televisão. Até porque ela é, há longos anos, o ator dominante da paisagem mediática. E, claro está, a crítica endereça-se a maior parte das vezes à RTP. Porque é ela que faz parte há mais tempo do património cultural português. Porque é considerada como “serviço público” e, por isso mesmo, paga naturalmente por todos nós. Quando as privadas existem sobretudo como negócio ou como instrumentos de pressão social, cultural e política. E quando estas mesmas televisões podem mudar de proprietários, como aliás se tem visto. Mas imagina-se dificilmente que a pública possa mudar de proprietário(s) e daquilo que é teoricamente o seu projeto cultural.

Porém, os responsáveis da RTP não gostam nada que os cidadãos-pagadores-da-contribuição-audiovisual façam uso do sentido crítico. Recorrem assim ao velho adágio que estipula que a melhor defesa é o ataque, desencadeando a “bomba atómica” que consiste em acusá-los de “censura”. Mesmo quando críticos há que viveram e foram vítimas da censura, no que consumiam como no que produziam, quando a maior parte dos ditos responsáveis (se não todos) nunca souberam o que isso era.

Ora, não será salutar em democracia que, livremente, serenamente e sem demagogia, haja espectadores que se interroguem sobre a “sua” televisão? Sobre a duração dos telejornais (duas a três vezes superior à da maior parte dos colegas europeus)? Sobre o facto de que, no início dos jornais, quando há títulos, sejam sempre três e que um deles seja obrigatoriamente sobre futebol? Sobre a seleção dos factos de atualidade praticada geralmente; dando demasiada atenção a crimes, acidentes e curiosidades sem relevância social, e ao futebol (quotidianamente cuidado); esquecendo boa parte das vezes a atualidade internacional, societal, económica e cultural, o estrangeiro sendo amiúde tratado apenas a partir de faits-divers; transformando a “cobertura” da vida política em simples seguidismo diário (ou quase) de líderes partidários e ao que foi “cozinhado” previamente pelas assessorias destes, não fazendo o jornalista um elementar relato de síntese?

Não será de facto saudável que haja espectadores que se interroguem sobre a hierarquização e o alinhamento dos temas tratados? Sobre a formulação dos textos, em termos sintáxicos como lexicográficos (e até sobre os erros gramaticais regularmente cometidos na escrita como na pronúncia)? Sobre a raridade das reportagens (no sentido forte do termo) e dos documentos, devidamente gravados, montados e acompanhados pela indispensável voz “off”? Sobre a presença exagerada de jornalistas que mais nada fazem do que mostrar-se e estender o microfone a quase sempre o mesmo tipo de testemunhas, transformando até bastantes vezes a dita presença do/da jornalista numa entrada pela esquerda (ou direita) do ecrã e uma saída pela direita (ou esquerda), com ares por vezes de risível passagem de modelos?

E não será ainda normal que haja espectadores que se interroguem sobre a notória ausência de especialistas da redação nas principais áreas do conhecimento, capazes de pôr em perspetiva e analisar factos importantes da atualidade? E que achem pouco desejável que se recorra a “comentadores” que já fazem isso mesmo noutros jornais (impressos, radiofónicos, televisivos ou digitais), provocando uma lamentável concentração da “opinião” muito pouco pluralista?

Países há nesta nossa Europa em que a crítica dos media é uma atividade permanente de sítios em linha, rubricas regulares na imprensa diária e publicações periódicas especializadas. Por vezes mesmo com críticas ferozes aos programas de entretimento como de informação. Sem que isso provoque a suscetibilidade e muito menos a agressividade a que a direção da informação da RTP Televisão nos tem habituado nestes últimos tempos. Até porque as congéneres europeias têm consciência que os cidadãos mais não fazem do que usufruir de um elementar direito constitucional em democracia. E porque tais críticas os levam a reconsiderar o seu próprio trabalho e a procurar tomá-las em consideração em realizações ulteriores.

Habituada a imperar num panorama mediático nacional demasiado reduzido, a direção da informação da RTP Televisão não suporta reparos e muito menos críticas, estimando-se detentora de práticas profissionais inquestionáveis. Um pouco de autocrítica e de modéstia não lhe faria nada mal. Para bem de todos nós…»

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