«Com espanto, os portugueses (e, em especial, os que o elegeram) viram Marcelo a urdir a trama de uma crise provocada por si próprio. Em 2015, quando se candidatou pela primeira vez, esforçou-se para desmentir as acusações de gerador de mal-entendidos e de intrigas, jurando que iria ser um promotor de estabilidade. Em 2016, foi reiterando esse compromisso, ao ponto de até elogiar, em 2017, a estabilidade governativa gerada pela “geringonça”. Ao recandidatar-se, reforçou essa promessa. Há bem pouco tempo, jurava que a reconstrução económica e a recuperação da pandemia exigia a manutenção dessa estabilidade governativa.
Sucede que Marcelo revela ser igual a todos os outros. Ou melhor, igual a si próprio.
O início do seu novo mandato presidencial revela o óbvio: que os Presidentes tendem a revelar uma partidarite aguda no segundo mandato, mal se veem reeleitos e percebem que estão livres para impor a sua visão do mundo e promover os que lhe estão (ideologicamente) próximos.
Em 13 de outubro de 2021 – ou seja, apenas 2 dias após a entrega da proposta de orçamento –, profere declarações públicas através das quais ameaça dois partidos políticos que não o apoiaram na reeleição presidencial com a dissolução do parlamento. Tentaram dizer alguns (e insinuou o próprio) que só o fez ao abrigo da sua magistratura de influência, alegadamente para contribuir para o desenlace bem-sucedido do processo orçamental.
Mas, afinal, que capacidade de influência teria Marcelo sobre partidos como o PCP e o Bloco de Esquerda?!? Que influência tem um Presidente que foi eleito contra os programas ideológicos e os candidatos apoiados por aqueles partidos? Que influência tem um Presidente que prefere receber, em surdina, o opositor do líder do principal partido de oposição e o recém empossado Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, enquanto o parlamento debate o Orçamento?
Dúvidas não restam: Marcelo tornou-se num Presidente de fação. Um Presidente que promove e despromove atores políticos. Um Presidente que se imiscui na luta partidária do próprio partido. Um Presidente que quer fazer e desfazer maiorias.
Sejamos, claros: não há uma única norma (ou sequer precedente) constitucional que legitime um Presidente da República que prometeu velar pela estabilidade política a dissolver uma Assembleia da República que não conseguiu aprovar uma primeira versão de Orçamento do Estado.
Pior do que isso, a nova Lei de Enquadramento Orçamental – que, aliás, foi promulgada pelo próprio Marcelo, em 12 de agosto de 2020 (e que, portanto, o mesmo não pode desconhecer) – estabelece que, em caso de não aprovação, continua a vigorar o Orçamento anterior até que o Governo apresente nova proposta [cfr. artigo 58.º, n.º 1, alínea d)].
A dissolução do Parlamento deve ocorrer em duas circunstâncias: em caso de ingovernabilidade e em caso de contestação social generalizada.
Ora, o próprio Governo já garantiu que, ainda que o Orçamento seja chumbado, mantém condições (e vontade) para governar. Mais do que isso, nenhum dos partidos que têm apoiado medidas legislativas e governativas concretas apresentou qualquer moção de censura ou reclamou a convocação de novas eleições. Por fim, não há qualquer movimento social significativo que as reclame, tendo a esmagadora maioria da população sido apanhada desprevenida pelas declarações insensatas do Presidente da República.
A Lei de Enquadramento Orçamental é claríssima, garantindo que a não aprovação, à primeira tentativa, de um Orçamento não provoca uma crise política. Por exemplo, aquela lei permite ao Governo:
a) Cobrar receitas, incluindo impostos e outros tributos, a não ser as que se cessassem no ano orçamental anterior [artigo 58.º, n.º 3, alínea b), e n.º 6];
b) Emitir dívida pública e obter empréstimos [artigo 58.º, n.º 5, alínea a)];
c) Conceder empréstimos e fazer pagamentos [artigo 58.º, n.º 5, alínea b)];
d) Conceder garantias pessoais [artigo 58.º, n.º 5, alínea c)].
Isto significa que o Governo não fica paralisado. Bem pelo contrário.
Não existe, aliás, qualquer risco de não aplicação das verbas do PRR – Plano de Recuperação e Resiliência, visto que o Governo não está impedido de executar as respetivas medidas. O PRR funda-se na transferência de verbas a fundo perdido, pela Comissão Europeia, pelo que o Estado português não precisa de mobilizar verbas próprias para proceder a quaisquer pagamentos. Acresce que a Lei de Enquadramento Orçamental não impede o Governo sequer de proceder ao pagamento de despesas, desde que limitadas às verbas que disporia em cada mês do ano orçamental anterior. Ora, há dois fatores que flexibilizam a transferência de verbas cabimentadas de umas rubricas orçamentais para outras: 1.º) para efeitos de combate à pandemia de Covid-19, a lei orçamental de 2020 estabeleceu almofadas orçamentais, que poderiam ser utilizadas em caso de necessidade; 2.º) ainda nem sequer foi aprovado decreto de execução orçamental relativo ao Orçamento de 2020, o que permite que o Governo, através deste instrumento, determine a transferência de verbas entre rubricas orçamentais.
Em suma, nas atuais circunstâncias, o Governo tem todas as condições para continuar a governar, mesmo sem orçamento aprovado.
Não ignoro que é a primeira vez, em Democracia, que não temos um orçamento aprovado.
Mas também é a primeira vez que um Governo minoritário se mantém em funções durante 6 anos e que os partidos que o suportam mantêm a vontade de diálogo parlamentar construtivo.
Só um país parado no tempo é que gosta de saltar de eleição em eleição, ao invés de se concentrar na negociação permanente e na obtenção de compromissos quanto a políticas concretas.
Não vi, até hoje, qualquer dos partidos que têm formado maiorias parlamentares, durante os últimos 6 anos, a recusar compromissos e a afirmar que esgotaram essa capacidade negocial. Ou a reclamar eleições antecipadas. Bem pelo contrário, o que reiteram é as suas (salutares) divergências com o programa político seguido pelo partido minoritário que formou Governo, ao mesmo tempo que garantem a sua disponibilidade para conversar e promover consensos.
Há mais vida para além do Orçamento!
Na verdade, em certo sentido, a não aprovação de novo Orçamento até teria uma inegável vantagem: promover a estabilidade legislativa, impedindo mais uma enxurrada de alterações. Noto, aliás, que, desde 2015, os sucessivos orçamentos já introduziram 522 (!!!) alterações de conteúdo fiscal.
Aqui bem perto, na (elogiada e invejada) Alemanha, há larguíssimos anos que partidos de espectros bem diferentes se entendem. Neste momento, há um Governo em formação que alia sociais democratas, ecologistas e liberais.
Por cá, somos demasiado especiais.
Não toleramos a divergência. Queremos o regresso ao autoritarismo monocolor. Julgamos que estabilidade é sinónimo de autocracia.
É bom que o Presidente da República cumpra a promessa que fez aos seus eleitores.
Nele votaram, segundo os estudos eleitorais, um número significativo de eleitores do Partido Socialista e de outros partidos de esquerda, que continuam a suportar a presente solução governativa. Entre os seus eleitores, cerca de 45% eram eleitores do PS, que nem sequer apoiou qualquer candidato.
Hoje, o Presidente da República não pode ser apenas o Presidente das correntes revanchistas de um “passismo” que apoia Rangel e oscila entre esfregar as mãos e usá-las para esfaquear (politicamente) o atual líder do PSD.
Ainda está a tempo de cumprir aquilo com que se comprometeu. Tal como afirmou em 13 de outubro, “as pessoas devem pensar duas vezes”.
Se marcasse eleições antecipadas, quando se mantêm todas as condições para que o Governo continue em funções, Marcelo Rebelo de Sousa perderia qualquer legitimidade para exercer o poder moderador que cabe ao Presidente da República.
Deixaria de ser o Presidente de Todos os Portugueses.
Passaria a ser o Presidente de apenas alguns.»
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1 comments:
O texto parece-me um exercício de lógica consistente e inatacável. Mas também penso que, a decisão que implicitamente o autor prevê venha a ser tomada pelo Presidente, é tão legítima como qualquer uma das outras que a lei prevê para a circunstância. E, além do mais, foi o conjunto da designada esquerda que "se pôs a jeito" para o desenlace previsível. Da mesma forma que "se pôs a jeito" o Presidente, ao "meter a pata na poça", para as críticas que agora lhe fazem - algumas como retroativo - até alguns dos que, em dados momentos, só lhes faltou chamar-lhe "o nosso Presidente"; ou, até, "um Presidente de esquerda".
nelson anjos
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