«Tenho ali uma fotografia dela: estamos a cara uma da outra.” Maria ainda se lembra da avó. Era a chefe da família. Numa altura em que as crianças abandonavam a escola para irem trabalhar, a senhora fez questão de que os filhos estudassem. “Naquele tempo, no Montijo, era muito raro.” Os quatro filhos e o pai andavam todos sob a sua batuta. Tinha muito pouca instrução, mas “falava e escrevia muito bem e sabia que a educação era uma coisa importante”. A neta está na sala de sua casa, encostada ao cadeirão. Já não é a mulher que foi aos 40 anos. O cabelo está grisalho, apanhado na nuca. Na testa, a ruga não consegue mascarar a ansiedade. “Eu quando era nova, era muito autoritária. Saio à minha avó. Agora já não sou.”
“Ainda me lembro dos cartuchos de amendoins que ela me dava sempre. Eram uns cartuchos pequeninos. Parece que estou a ver o armário onde ela os guardava.” Diz “Parece que estou a ver” e, olhando-me, já não me olha. Vê o armário de cozinha — vejo-o pelos seus olhos. Armário de duas portas tapadas com duas cortinas. Parece que os vemos. Os amendoins que a avó descascou, sobre a bancada. A sertã em que os torra. O cheiro de amendoim torrado, espalhado na cozinha. Os cartuchos de papel manteiga azul enrolados pelas mãos enrugadas da senhora.
“Andavam todos muito engomados, o marido e os filhos, enchapelados. À saída de casa, a mãe punha-os em fila e dava 25 tostões a cada um. 25 tostões era uma fortuna. Eles lá iam com o dinheiro. Mas não era para gastar. Era só para não fazerem má figura, no caso de ser preciso. Ao fim do dia, quando chegavam a casa, ela recolhia os 25 tostões que lhes tinha dado à saída. Era uma senhora assim. Não queria que os homens da casa passassem por desgraçados.” Vejo-os aos cinco, que não conheci nenhum. Engomados e cheirosos de manhã. Estafados do trabalho, à chegada, a devolverem os 25 tostões, que a senhora guarda num saquinho de veludo debaixo da almofada.
Procuro pela senhora em Maria, que não sei quem procuro. Talvez esteja no preceito com que trata da casa e dos seus. Talvez no desejo de não fazer má figura. Fico de ver uma fotografia da avó de Maria, mas ela não a encontra, e não confirmo a parecença. Mas parece que conversa comigo pela tarde, parece que a estou a ver, parece falar pela boca da neta, fosse ela, a ausente, quem finge distrair-se com memórias, no abismo do resultado próximo de exames médicos. Os dias mais belos são aqueles que passam mais despercebidos, entre os domingos e as terças-feiras, horas que parecemos estar a viver, mas nunca vimos. Sentada junto a Maria, estou perante um país que acabou, e do qual apenas sobrámos nós.»
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