9.11.21

Ricardo Paes Mamede

 

«O PS tem toda a legitimidade para entender que já não tem condições para governar com o apoio parlamentar dos partidos à sua esquerda. BE e PCP também têm toda a legitimidade para concluir que não faz sentido viabilizar um governo que governa sem acolher propostas que consideram essenciais e que não concretiza muito dos compromissos que assume todos os anos.

Hoje não vejo como um problema o fim antecipado da legislatura. Sabemos agora que a dissolução do Parlamento não impede o essencial da execução do PRR, nem do que constava da proposta de Orçamento do Estado para 2022. Acresce que as condições em que a esquerda e o centro esquerda vão disputar eleições em Janeiro são quase de certeza melhores do que seriam daqui a um ano ou dois, dada a instabilidade económica que se espera nos próximos meses e o processo em curso de reorganização dos partidos de direita.

Como eleitor de esquerda, o importante para mim é que o próximo governo esteja comprometido com o aumento dos salários, o reforço dos serviços públicos e um maior equilíbrio das relações laborais. O que me interessa compreender é se há condições e vontade dos partidos à esquerda para que das próximas eleições resulte uma solução política alinhada com aqueles objectivos.

Deste ponto de vista, a entrevista de António Costa à RTP não me convenceu. O Primeiro Ministro e líder do PS identificou duas questões como motivos para inexistência de acordo: a proposta do BE para eliminação do factor de sustentabilidade das pensões (criado numa altura em que a idade legal de reforma ainda era fixa); e a proposta do PCP de um aumento mais rápido do salário mínimo nacional.

António Costa afirmou ontem que aquela proposta do BE punha em causa a sustentabilidade da segurança social. É factualmente errado. A proposta do BE sobre o factor de sustentabilidade não mexe em aspectos estruturantes do sistema de pensões: não altera a ancoragem da idade da reforma na esperança média de vida, nem elimina o corte que se aplica a todas as pessoas que se reformam antes da idade legal (o chamado “factor de redução”). O seu propósito era eliminar a injustiça actual que leva a que algumas pessoas sejam mais penalizadas do que outras apesar de serem mais velhas e de terem feito mais descontos. Nas contas do BE, com base na informação disponível e que o governo não contestou, tal alteração teria um custo estimado de 75 milhões de euros em 2022 (menos de 0.05% do PIB), decrescendo ao longo dos anos. Estando ou não de acordo com a eliminação do factor de sustentabilidade (e há razões não orçamentais para questionar a proposta), não se pode afirmar que ela poria em causa a sustentabilidade da segurança social.

Quanto ao aumento do salário mínimo, António Costa afirmou que o PCP exigia um valor de 755 euros em Janeiro e 800 euros ao longo de 2022 – o que, segundo o Primeiro Ministro seria incomportável. No entanto, vários dirigentes do PCP já afirmaram que estes valores (que já ficavam aquém do que o PCP defendeu nas últimas eleições, ou seja, 850 euros) eram bases de negociação e que o governo nunca colocou a hipótese de ir além dos 705 euros em 2022 (o discurso de ontem de António Costa validou esta ideia). A pergunta que fica é: o PS aceitaria em futuras negociações um valor intermédio (digamos 725 euros em 2022, 785 em 2023 e 850 euros em 2024)? Se não, porquê? O que leva o PS a acreditar que os valores que fixou são o limite possível? Em que estudos baseia essa afirmação? Não seria possível, como questionou o entrevistador António José Teixeira, compensar essas subidas de salários com medidas fiscais, por exemplo? Ou condicionar o ritmo de aumentos a um sistema de monitorização dos impactos da medida (como, de resto, está estabelecido desde o acordo tripartido de 2006)?

Na campanha eleitoral (que já começou), espero dos partidos disponibilidade para chegar a compromissos, em vez de imporem unilateralmente a sua agenda aos outros (isto aplica-se aos três, sem excepção). Ou então que sejam claros e convincentes sobre a razão de ser das suas linhas vermelhas (idem). Nesta primeira entrevista após o chumbo do Orçamento, António Costa não passou no teste. Se calhar, também não era eu quem ele queria seduzir.»

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