«António Guterres chamou-lhe “apartheid de viagens”. O secretário-geral da ONU condenou a injustiça de que a África do Sul foi objecto por ter detectado uma nova variante da covid-19. O facto de aquela variante ter sido referenciada primeiro naquele país deve-se, antes de mais, à experiência e conhecimento dos laboratórios sul-africanos e à sua rede de vigilância genómica do SARS-CoV-2 (que já tinha permitido identificar a variante Beta no fim de 2020).
Mas isso não pode ser motivo para que os países ocidentais tenham sido tão expeditos a interromper os voos com a África austral. Ao fazê-lo, como sublinham os cientistas, estão a quebrar o normal fornecimento de reagentes importantes para que os laboratórios continuem a fazer o seu trabalho, assim como de medicamentos, vacinas ou material de protecção individual.
A injustiça é ainda maior depois de sabermos que foram identificados casos de doentes infectados com a variante Ómicron nos Países Baixos, antes de esta ter sido revelada pelos cientistas sul-africanos. Historicamente, África sempre foi alvo de todo o tipo de estereótipos e de origem de todos os males.
Jennifer Nuzzo escrevia, na Foreign Affairs de Janeiro/Fevereiro deste ano, que a covid-19 revelou tanto a fragilidade das cadeias de abastecimento globais como a distribuição desigual de medicamentos e de material de protecção em todo o mundo. Nessa altura, a epidemiologista norte-americana, professora associada da Johns Hopkins, dizia que “os países de baixos rendimentos, em particular, sofreram uma grave escassez de máscaras respiratórias, luvas, batas, e muito mais”. Quase um ano depois, a vacinação desigual acentuou o fosso.
Uma pandemia não deixará de ser uma pandemia se essas disparidades se mantiverem. Não deixaremos de ter novas estirpes se o processo de vacinação não se tornar, também ele, global, como insiste a Organização Mundial da Saúde. Neste momento, não se trata, simplesmente, de solidariedade, mas também. É do maior interesse dos países ricos que assim seja.
A globalização tinha posto em causa a era dos Estados-nação, como dizia Giddens. Um vírus veio estorvar esse modelo de globalização económica e financeira e obrigar os países a empenharem-se mais no Estado-Providência do que na procura das vantagens competitivas do mercado global. A incógnita é saber se sobreviverá a uma pandemia que se renova. Chegados aqui, é de uma nova estirpe de globalização que precisamos.»
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