2.12.21

Tão político que é este veto...

 


«Por duas vezes, a Assembleia da República aprovou, por bastante mais que a maioria absoluta de deputados – 138 em 230 – a despenalização da morte assistida. Uma lei cautelosa que reconhece que, em casos estritamente delimitados, a irreversibilidade da degradação física e o sofrimento atroz por ela provocado justifica aceitar a vontade de antecipação da morte de quem experimenta esse fim de vida dilacerante.

Em ambos os casos, o Presidente da República recorreu à sua prerrogativa constitucional de não promulgar o que o Parlamento aprovou. Num primeiro tempo, invocou para isso dúvidas de constitucionalidade. Agora invoca dúvidas de interpretação jurídica. Sublinhe-se que, no seu requerimento de apreciação da lei pelo Tribunal Constitucional, o Presidente da República não solicitou que essa apreciação incidisse sobre a variedade de fórmulas verbais (“doença incurável e fatal” em dois artigos e “natureza incurável da doença” num outro) usadas para referir a condição de doença de extrema gravidade como requisito para a solicitação da morte medicamente assistida.

Que fique bem claro: a variedade terminológica para enunciar o requisito de doença existia realmente já na versão inicial da lei. E isso não foi assumido pelo Presidente da República como obstáculo a uma inequívoca determinabilidade do conceito em apreço. Que o Presidente da República só tenha então suscitado dúvidas sobre os conceitos de “lesão definitiva” e de “sofrimento intolerável” e não sobre os diferentes modos como estava acolhida normativamente a condição de doença fatal é relevante. Era-o na altura, é-o mais ainda agora que o Presidente veta a lei por entender que há uma variedade terminológica na enunciação do requisito da doença que lhe causa “inesperadas perplexidades”.

Leia-se então a lei. Diz o artigo 3.º que “[p]ara efeitos da presente lei, considera-se morte medicamente assistida não punível a que ocorre por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.” E o artigo anterior define doença grave ou incurável” como “doença grave que ameace a vida, em fase avançada e progressiva, incurável e irreversível, que origina sofrimento de grande intensidade”. Alguma dúvida de que em ambos os casos o que se prevê é uma doença de extrema gravidade que põe em risco a subsistência mesma da vida, causando um sofrimento atroz ao paciente? Não, nenhuma. Nenhum espaço para inclusões anedóticas ou para desgraduações da fatalidade em causa. É sempre e só de doença fatal que se fala. O que não é o mesmo que falar, sempre e só, de morte iminente. Aspirará porventura o Presidente da República a que assim venha a ser. Mas, porque estamos num Estado de Direito com separação de poderes, a única aspiração que pode ser lei é a da maioria dos representantes do povo.

Causam, pois, perplexidade as perplexidades tardias do Presidente da República. Causa perplexidade que um veto político venha enroupado com a veste de veto por razões jurídicas. O tempo e o modo da justificação do veto presidencial têm um alcance político evidente. E pretendido pelo seu autor. Veto mais político que este era difícil.»

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1 comments:

Sevla disse...

Sejamos claros. A última coisa que o Presidente quer é promulgar essa lei, estritamente por convicções pessoais. Imagina que, talvez em inícios de fevereiro de 2022, a composição da AR lhe permita resolver os seus problemas de consciência. É tortuoso? Sem dúvida, mas é Marcelo Rebelo de Sousa. R.Alves