16.12.21

Zemmour e os democratas dentro da cerca

 


«Éric Zemmour, jornalista, comentador e intelectual, é a nova estrela da extrema-direita francesa. O uso do choque para se tornar viral é tática conhecida e em que é mestre. Disse que Vichy protegeu os judeus – ele próprio tem ascendência judia da Argélia. Apontou uma arma aos jornalistas, numa brincadeira carregada de simbolismo e que também não é original. Sobre o ataque terrorista ao Bataclan, em Paris, disse que “em vez de bombardear o Iraque, a França devia bombardear Molenbeek” (o bairro muçulmano de Bruxelas). Mas a confusão com Donald Trump é absurda. Abertamente xenófobo e misógino, onde o ex-Presidente norte-americano é primário e ignorante Zemmour é sofisticado e culto.

Éric Zemmour ameaça a velha xenofobia orgânica herdeira de Pétain, que limou as suas arestas e assumiu um discurso social. Nas últimas sondagens que vi, tinha cerca de 15%, praticamente empatado com Marine Le Pen. Os dois juntos tinham cerca de 30%, quase mais 10 pontos percentuais do que o excelente resultado que a extrema-direita já tinha conseguido na primeira volta das últimas presidenciais, em 2017 (mais 6%, se contarmos com a votação que então teve Nicolas Dupont-Aignan, um dissidente da UMP). Cresce porque Zemmour é mais eficaz do que Le Pen a entrar no eleitorado republicano e até no eleitorado de Macron. O seu aparecimento teve dois efeitos interessantes: a normalização de Le Pen e a demonstração prática de como Macron precisa da extrema-direita.

Há umas semanas, na televisão, David Doukhan, um jornalista do “Le Parisien”, alertava para um estranho fenómeno: Zemmour tornou Le Pen mais frequentável e menos assustadora. Esta é a perversidade criada pelos que abandonam o seu lugar político contra um mal maior. Foi assim que boa parte da esquerda (e muita direita) se entregou nos braços de um liberal populista como Macron, esvaziando a sua capacidade de ser alternativa. Quem escolhe sempre o mal menor não só entrega o seu espaço a outros como ignora que haverá sempre um mal pior que fará do menor aceitável. Isso, e a desistência, por parte da esquerda, da sua agenda clássica, pela qual está a pagar pesadamente – os socialistas têm hoje 5%, Mélenchon caiu para os 8%.

A xenofobia e o racismo raramente são a causa, são quase sempre o sintoma. Um país não entra em decadência quando tem fortes comunidades migrantes – pelo contrário – e lida com as consequentes e inevitáveis tensões que isso sempre trouxe. Entra em decadência quando isso se torna insuportável. Quando esse incómodo passa a ter uma forte tradução política. As tensões, que podem ser complexas e não corresponderem à simples dicotomia entre racistas e cosmopolitas, não devem ser ignoradas. Mas Trump, Bolsonaro, Abascal, Zemmour e por aí adiante cresceram em circunstâncias muito diferentes. As razões têm de ser, portanto, mais profundas.

Como se vê pela reação à vacinação e às medidas sanitárias, ou ao politicamente correto e direitos das minorias sexuais, tudo são pretextos. É preciso olhar para os pretextos, porque alguns são complexos. Mas achar que basta ceder a esses pretextos para derrotar a extrema-direita não levará a melhores resultados do que ignorá-los.

Um artigo não chega para debater as razões profundas do crescimento da extrema-direita nos países ocidentais: a destruição das instâncias mediadoras e o poder absurdo entregue aos gigantes tecnológicos; a globalização desregulada que deixa metade pelo caminho; a dificuldade em garantir políticas eficazes de integração social dos migrantes, que não é nova; o enfraquecimento dos Estados nacionais e, com eles, da democracia e do poder dos cidadãos; a decadência económica do mundo ocidental e em especial da Europa; o aumento da desigualdade e a perda de poder dos trabalhadores, que ficarão ainda mais atomizados com o crescimento do teletrabalho; a morte de grandes narrativas alternativas ao capitalismo. Há milhares de razões para esta exaustão.

É nestas causas profundas que os devemos combater. E esse combate não se faz com uma paternalista compreensão da revolta das pessoas. Faz-se representando a revolta das pessoas de forma diferente, direcionando-a para a construção de alternativas, não para o ódio ao vizinho de baixo. Sim, é fundamental criar uma cerca sanitária em torno destes fanfarrões. Até porque à medida que cresce a sua força melhores serão os seus líderes, e Éric Zemmour é prova disso mesmo. A questão é se, ao tornar indistinto o que fica do lado de cá, não somos nós que ficamos dentro de uma cerca.

Com esta dúvida, passo para o segundo efeito de Zemmour: ele dividiu o campo da extrema-direita e, com isso, permitiu que a direita tradicional sonhe com uma ida à segunda volta, mesmo com resultados iguais ou inferiores aos do seu candidato, François Fillon, em 2017, que ficou excluído nas últimas eleições. Algumas sondagens dão Valérie Pécresse (dos republicanos) em segundo lugar, na primeira volta, muito abaixo dos dois candidatos de extrema-direita juntos, mas um pouco acima do primeiro deles. E, segundo pelo menos uma sondagem, a candidata da direita tradicional ganharia numa segunda volta contra Macron.

Assim se percebe porque Emmanuel Macron, que fez do perigo da extrema-direita o antídoto contra qualquer exigência política à esquerda ou contestação ao seu poder, precisa desesperadamente desse perigo. Sem ele, perde o poder.

É compreensível e até apelativa a ideia de que o combate político fundamental se faz entre democratas e antidemocratas. Mas ela pode ser perversa, por dar força aos antidemocratas. Pior ainda é a ideia de que o combate é entre os que estão abertos ao mundo e os inimigos da globalização, que entrega os derrotados da globalização a Zemmour e Le Pen, como os entregou a Trump. Como o centro-direita, a esquerda não se deve deixar levar por frentes moderadas que atiram para as margens da democracia qualquer discurso que se desvie do consenso atual. Foi isso que permitiu que Macron rebentasse com o sistema partidário francês, dando força a uma Le Pen que o tornava a ele na única escolha aceitável.

Quando os democratas se unem como se fossem uma força única ficam acantonados no “sistema”, uma palavra imprecisa que traduz um poder que as pessoas sentem que não controlam. Os democratas só se devem unir na defesa das regras do jogo e, quando elas estão em causa, agir firmemente, não temendo a vitimização dos prevaricadores. E na defesa de um chão comum de direitos humanos. Mas se essas regras e esse chão comum passam a ser o programa, já foram derrotados. Já só defendem os mínimos, num recuo que só interessa a quem deseja uma democracia mínima. É quando são alternativas entre si que os democratas defendem a democracia.

O valor da democracia não pode ser apenas a alternância, defendida pelos que continuam em negação perante um sério problema de regime. É conter em si alternativas que até podem corresponder a ruturas – desde quando a esquerda pode existir, mesmo a moderada, sem pelo menos questionar o capitalismo? Aceitar a radicalidade em democracia, sem a colar aos seus inimigos, é a condição para a democracia se renovar. Se não, a alternativa são eles. Até podem vir a ser alternativas entre si. Porque haverá sempre pior.»

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2 comments:

joão viegas disse...

"Intelectual" !?! Faz-me sempre confusão ver como as informações são deturpadas quando passam fronteiras (num sentido como no outro). Se Zemmour é um intelectual, então André Ventura é um sabio e um erudito...

Boas

Niet disse...

O Jöäo Viegas explica bem a duplicidade de Zemmour que näo é nem um " intelectual"
nem um erudito mas um "falso" historiador contra os historiadores profissionais, como ele diz, os verdadeiros, sérios e com nome feito na babilónica Paris do Centro Nacional de Recherce Scientifique(CNRS) e da École Pratique des Hautes Etudes en Sciences Sociale,( EPHESS),os templos de investigacäo histórica mundialmente famosos; e onde Pierre Bourdieu, Levi-Strauss, Charles Betelheim, Alain Touraine, Andre Gorz,Edgar Mourin, Poulantzas e Castoriadis, entre outros, brilharam e solidificaram os seus trabalhos de tese. Zémmour é um jornalista da "biblia" de direita civilizada, Le Figaro, onde entrevistou os arautos do neo-liberalismo francês e os tenores da classe politica pariseense de Centro-Direita que o influenciaram e acabaram por instrumentalizar, ele, Eric Zemmour, que tinha votado em Mitterrand em 1981 para as Presidenciais ganhas pelo lider PS da Uniäo de Esquerda com o PCF e os Radicais de Esquerda. Niet