12.1.22

A campanha do pântano

 


«O que aconteceu para, no meio de uma pandemia, vermos o candidato a primeiro-ministro a debater com o seu mais provável aliado o que fazer aos profissionais do SNS se ele for substituído por um sistema baseado nos privados? E este é só um dos casos.

Quem veja a maioria dos debates não imagina que estamos a atravessar uma crise sanitária sem precedentes. Não imagina que o nosso SNS está a atravessar uma das crises mais profundas da sua história, com a debandada de profissionais e que exige rápido reforço e medidas para o tornar atrativo para médicos e enfermeiros. Não imagina que depois disto vem uma crise económica e social. Nem que as moratórias bancárias acabam este mês. Não imagina que a crise política se deveu a divergências relevantes, que merecem ser debatidas com seriedade. Até porque algumas têm a ver com estes temas. Até agora, o primeiro-ministro dedicou mais tempo aos direitos dos animais do que ao PRR. É normal, tendo em conta as nossas circunstâncias?

Nos debates, ouvimos falar do Rendimento Básico Incondicional, uma medida só experimentada de forma piloto em países que ultrapassaram há décadas alguns dos problemas que vivemos. De homeopatia no SNS. Da taxa única de IRS num dos países mais desiguais da Europa. De modalidades da prisão perpétua, pena a que pusemos fim no século XIX. Tudo coisas que não acontecerão, pelo menos na próxima legislatura. E quanto mais esdrúxulos foram os temas maiores os elogios dos comentadores, que tomam inconsequência por ideologia. Não houve PRR, inflação, habitação. Dos temas que marcarão os próximos anos, só o SNS sobreviveu. E sobretudo nos debates dos partidos que foram da “geringonça”, para revisão da matéria dada.

Em 2011, 2015 e 2019, o país debateu as suas prioridades. Em 2011, a crise bancária que o poder financeiro transformou em crise da dívida soberana, transferindo para os cidadãos a fatura dos seus desvarios, e as responsabilidades nacionais na forma como lidámos com isso. Em 2015, o fracasso social e económico da austeridade e a forma de reverter o rasto de destruição que deixou. E de como a esquerda se tinha de entender, não para a construção de um programa comum, mas para impedir que a violência social se cristalizasse como política pública. Em 2019, já com menos empenho, mas ainda alguma esperança, se ainda havia caminho comum a fazer. Pelo menos a esquerda discutiu programa e o que ainda faltava nele.

Porque é que, em tempos tão complicados, as agendas mais simbólicas dos pequenos partidos conseguiram tomar conta da pré-campanha? Por causa do modelo de debate? Talvez ajude, porque sobrevaloriza partidos de nicho. Por causa da pandemia, que nos deixa uma enorme margem de incerteza? É possível, mas isso deveria reforçar a necessidade de discutir a estratégia para a recuperação. A principal razão é a natureza quase exclusivamente tática dos discursos dos dois principais partidos.

António Costa está a gerir os seus últimos cartuchos como primeiro-ministro. Até ele sabe que a maioria absoluta é uma miragem. No entanto, aposta nesse apelo. Porque ele serve para a única coisa que tem para dizer nesta campanha: culpar os supostos parceiros, assustar com a direita e dizer que para lá dele é o caos. Não há, no discurso de Costa, uma centelha de esperança e de projeto. Grita estabilidade, mas não consegue dar-lhe um conteúdo político.

Já Rui Rio, acredita no que disse aos seus concorrentes de direita: que ele é a única forma de tirar Costa do poder. E que as eleições não se ganham, perdem-se. Não pode acreditar noutra coisa. Basta ouvir os debates em que participou para perceber que não tem a mais vaga ideia do que fazer com o poder. Para além do autoritarismo difuso que quis apagar com um sorriso permanente, de divagações de café e das suas embirrações pessoais, a impreparação em quase todos os temas é aflitiva. Safa-se, porque grande parte dos debates foi semelhante a uma amena conversa, onde ele é agradável.

No que teve com Cotrim de Figueiredo isso foi especialmente evidente. Como é que alguém que se candidata a primeiro-ministro diz que terá posto, há uns bons anos, os seus filhos na escola privada porque a pública não presta e essa afirmação não é tema no dia seguinte, perante um insulto à escola pública que ainda por cima é negado pelos dados da evolução da prestação dos alunos portugueses? Porque, no fundo, são poucos os que o imaginam primeiro-ministro.

As bizarrias programáticas dos pequenos partidos tomaram conta dos debates (falta o confronto entre Costa e Rio) porque houve um ciclo que se fechou e ainda não há protagonistas para o próximo. Não é Rio, alguém sem qualquer visão para lá da sua paróquia. E já não é Costa, que quer desfazer a realidade política que ele próprio criou em 2015, mas de que dificilmente se livrará no seu próprio ciclo de poder. Esta campanha é como é porque é um intervalo. As sondagens indicam que não haverá condições para uma solução mais estável do que a atual. Os apelos do Presidente não mudam isto. Os novos ciclos não se decretam. Claro que podem vir surpresas no dia 30. Como disse um autor indeterminado, é difícil fazer previsões, especialmente sobre o futuro. Mas esta campanha não cheira a novo ciclo, cheira ao que tivemos nos dois últimos anos e podemos continuar a ter por mais dois: a pântano.»

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