9.1.22

Ilusões no virar a página

 


«Nas suas mensagens institucionais deste início de ano, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa afirmaram, em uníssono, a necessidade de "virar a página". Esta expressão conduz-nos, de imediato, para um desejo forte que nos pode e deve mobilizar a todos: libertarmo-nos da pandemia que atrofia a vida de cada um e provoca graves retrocessos na sociedade. Mas, as suas mensagens e os contextos em que se situam podem induzir ilusões, desde logo porque existe uma relação profunda entre passado, presente e futuro, e este não se torna melhor por mero desejo.

Que propostas para a resolução dos problemas dos portugueses e do país, e que estudo e estratégias estatais cada um deles avança no seu virar a página? Em que estado está a economia e a sociedade portuguesa e como se propõem mobilizá-las?

Não se vira a página prosseguindo a utilização da precariedade e do desemprego, secundarizando a qualidade da gestão e o papel determinante de boa organização do trabalho. Não se vira a página "apoiando a economia" com o facilitismo dos baixos salários, com a ampliação do chapéu protetor do Estado em vantagens fiscais e benesses a setores e empresas parasitários ou acomodados, ou ainda, com a desregulamentação das relações laborais para manter a nossa especialização em setores estruturalmente pouco produtivos. Não se vira a página alimentando o populismo fascizante através de condescendência com a pobreza e as desigualdades, de insuficiências da justiça, da tolerância com o racismo, ou de entretenimentos alienantes. Não se vira a página persistindo na conversa intelectualmente preguiçosa que aponta o caráter dos portugueses, ou as "incapacidades dos trabalhadores", como causas da baixa produtividade.

A baixa produtividade é em si mesmo um problema. Todavia, o bloqueio ao crescimento da produtividade resulta, essencialmente, de quatro factos: i) a herança de um passado com uma industrialização tardia e uma agricultura atrasadíssima, no quadro de um regime político tacanho e fascista; ii) opções de desindustrialização e de abandono de atividades produtivas, bem como a utilização de privatizações para negociatas e financeirização da economia; iii) políticas de centralização que conduziram ao abandono de grande parte das regiões do país; iv) e, nas últimas décadas, a aposta absolutizada no turismo e atividades conexas, onde o valor acrescentado é inevitavelmente baixo.

Promessas de virar a página sem políticas que rompam, paulatinamente e a prazo, com este passado/presente são inexequíveis. A Direita não apresenta propostas que garantam melhores condições à esmagadora maioria dos portugueses, que salvaguardem direitos fundamentais e o desenvolvimento do país. Uma maioria absoluta do PS não é solução. Não foi por falta de estabilidade que o seu governo não rompeu plenamente com as políticas de austeridade e não começou a encetar os passos necessários para esse novo virar de página.

A mudança necessária poderá avançar se, como defende uma centena de destacados cidadãos num abaixo-assinado divulgado na terça-feira, a Esquerda, na sua pluralidade, construir uma agenda e sustentar um governo que mobilize um amplo leque de forças sociais e políticas e as ponha a dialogar, que promova a recuperação socioeconómica, uma política industrial e investimento em setores económicos promissores, um desenvolvimento justo e sustentável.»

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