7.1.22

Patins de rodas num pavilhão de gelo

 


«Harry Potter não foi convidado para um dos milhares de debates televisivos que vão, para alegria nacional, substituir as telenovelas no horário nobre televisivo. É pena, mas compreende-se. As magias que poderiam sair dos seus dedos são infinitamente menores que aquelas que os líderes partidários prometem aos crentes. A ilusão é tal que, segundo parece, Portugal pode transformar-se no paraíso. Ou no Dubai europeu.

Pura ilusão de óptica. Portugal é o sítio onde se praticam magias defeituosas, se contratam bruxos incapazes e, no fim, o prémio sai sempre aos mesmos. Estamos a um mês do Congresso da Magia para Crédulos, vulgarmente conhecido como eleições legislativas, onde os pretendentes ao grande prémio prometem transformar coelhos em elefantes, ovelhas em unicórnios e objetos inanimados em tartarugas. E, mesmo, como magia suprema, transformar os pobres e remediados em classe média. Aos espectadores apenas se pede que coloquem uns papéis dobrados na cartola.

E zás! A magia realizar-se-á! O mês de janeiro vai ser de patinagem artística com os desportistas da política a usarem patins de rodas num pavilhão de gelo. Haverá escorregadelas para todos os gostos.

O doutor António Costa quer a eternidade e o discurso único: “o que é a maioria absoluta? É metade mais um”. Pede pouco ao extenuado povo português, entre a pandemia e o regresso da “salvadora” austeridade que começa com a consoada da inflação. E que vai demolir o resto dos equilíbrios deste Estado social que os mais à Direita querem transformar numa “meritocracia” de alguns, sempre os mesmos. O que é propôr uma única taxa de IRS como clama orgulhoso o doutor Ventura, dizendo alto o que outros, mais selectos, pensam? Entre a situação e a oposição há mesmo um Harry Potter que faça a diferença nos truques e nas magias?

O professor Marcelo Rebelo de Sousa, olhando para este pântano quase tropical, pede “previsibilidade”. Da mesma forma que se pede chuva no Inverno e sol no Verão. Não é “previsibilidade” o que nos tem sido oferecido até agora? Não era previsível que a doutora Edite Estrela, depois de ter passado anos incógnita no Parlamento, possa ser recompensada com a presidência do mesmo? O doutor Medina, como já dissémos aqui há algumas semanas, é o grande sonho do doutor Costa para as Finanças. Depois do estado em que deixou Lisboa, hoje uma imensa catástrofe habitacional, quem melhor para lidar com as cativações deste antigo condado?

O que é que não era previsível no estranho caso do almirante Gouveia e Melo? É fruto de uma planta enxertada: a sonhada governamentalização das Forças Armadas (concretizada pela nova lei de Bases), objetivo há muito acalentado pelo PS e que também tem a benção de parte substancial do PSD. O vice-almirante, seduzido pelo sabor da maçã do poder, serve assim os objetivos: o poder político livra-se de uma voz incómoda (a do almirante demitido ao pontapé que se permitiu discordar da nova lei de Bases) e sossegam-se os anseios políticos do vice-almirante até à próxima jogada de xadrez. Mas estará dentro do sistema e, por isso, controlável. O dinheirito para reconverter o reabastecedor Bérrio já deve estar coberto pelo PRR. A próxima sucessão para um cargo superior nas Forças Armadas terá já a forma de nomeação de um administrador hospitalar feita pelo ministério competente. Previsivelmente, o doutor Cravinho também há-se ser presidente da AR ou de um grupo folclórico por serviços relevantes ao país.

A situação política nacional é um enorme episódio dos “Simpsons”. Onde o tempo passa mas os personagens continuam iguais. Desde o primeiro episódio da série, em 1989, até hoje, Homer trabalha na mesma central nuclear e Bart e Maggie não mudaram. No mundo sucedem-se os acontecimentos, mas os personagens são como o Dorian Gray criado por Oscar Wilde: nunca envelhecem. Da mesma forma os candidatos que se remexem ao sabor do vento nestas legislativas nem sequer arriscam. Lembremos que em 1997 foi colocado à venda o primeiro livro da série de Harry Potter, um mês antes de Tony Blair entrar no nº10 de Downing Street. Blair e Potter tinham semelhanças: tinham ganho reconhecimento pelo charme e novidade. Contra todos os bruxos do mundo (Voldemort, no caso de Potter, Bin Laden no caso de Blair), eles queriam pôr em causa a busca da imortalidade dos seus inimigos. Blair herdava a nação de Thatcher e quando ganhou o poder no Labour em 1994 era considerado um inocente. Ganhou a alcunha de Bambi. Mas depressa foi considerado um Estaline. “Da Disneylândia à ditadura em apenas 12 meses. Não sei qual prefiro”, diria mais tarde o então primeiro-ministro.

Harry Potter queria servir o mundo dos mágicos contra o dos tenebrosos bruxos. Blair tentava seduzir: “nós somos os servos, eles – os eleitores – são agora os mestres”. Mas Blair mostrou quão ténue era (e é) a linha divisória entre os conservadores e os trabalhistas, numa época em que as ideologias eram dinamitadas pela economia de mercado e pela globalização. Mas, no início, Potter e Blair queriam derrubar as estátuas da previsibilidade. Mas hoje o que propõem os nossos políticos? A previsibilidade do costume.»

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