«Harry Potter não foi convidado para um dos milhares de debates televisivos que vão, para alegria nacional, substituir as telenovelas no horário nobre televisivo. É pena, mas compreende-se. As magias que poderiam sair dos seus dedos são infinitamente menores que aquelas que os líderes partidários prometem aos crentes. A ilusão é tal que, segundo parece, Portugal pode transformar-se no paraíso. Ou no Dubai europeu.
Pura ilusão de óptica. Portugal é o sítio onde se praticam magias defeituosas, se contratam bruxos incapazes e, no fim, o prémio sai sempre aos mesmos. Estamos a um mês do Congresso da Magia para Crédulos, vulgarmente conhecido como eleições legislativas, onde os pretendentes ao grande prémio prometem transformar coelhos em elefantes, ovelhas em unicórnios e objetos inanimados em tartarugas. E, mesmo, como magia suprema, transformar os pobres e remediados em classe média. Aos espectadores apenas se pede que coloquem uns papéis dobrados na cartola.
E zás! A magia realizar-se-á! O mês de janeiro vai ser de patinagem artística com os desportistas da política a usarem patins de rodas num pavilhão de gelo. Haverá escorregadelas para todos os gostos.
O doutor António Costa quer a eternidade e o discurso único: “o que é a maioria absoluta? É metade mais um”. Pede pouco ao extenuado povo português, entre a pandemia e o regresso da “salvadora” austeridade que começa com a consoada da inflação. E que vai demolir o resto dos equilíbrios deste Estado social que os mais à Direita querem transformar numa “meritocracia” de alguns, sempre os mesmos. O que é propôr uma única taxa de IRS como clama orgulhoso o doutor Ventura, dizendo alto o que outros, mais selectos, pensam? Entre a situação e a oposição há mesmo um Harry Potter que faça a diferença nos truques e nas magias?
O professor Marcelo Rebelo de Sousa, olhando para este pântano quase tropical, pede “previsibilidade”. Da mesma forma que se pede chuva no Inverno e sol no Verão. Não é “previsibilidade” o que nos tem sido oferecido até agora? Não era previsível que a doutora Edite Estrela, depois de ter passado anos incógnita no Parlamento, possa ser recompensada com a presidência do mesmo? O doutor Medina, como já dissémos aqui há algumas semanas, é o grande sonho do doutor Costa para as Finanças. Depois do estado em que deixou Lisboa, hoje uma imensa catástrofe habitacional, quem melhor para lidar com as cativações deste antigo condado?
O que é que não era previsível no estranho caso do almirante Gouveia e Melo? É fruto de uma planta enxertada: a sonhada governamentalização das Forças Armadas (concretizada pela nova lei de Bases), objetivo há muito acalentado pelo PS e que também tem a benção de parte substancial do PSD. O vice-almirante, seduzido pelo sabor da maçã do poder, serve assim os objetivos: o poder político livra-se de uma voz incómoda (a do almirante demitido ao pontapé que se permitiu discordar da nova lei de Bases) e sossegam-se os anseios políticos do vice-almirante até à próxima jogada de xadrez. Mas estará dentro do sistema e, por isso, controlável. O dinheirito para reconverter o reabastecedor Bérrio já deve estar coberto pelo PRR. A próxima sucessão para um cargo superior nas Forças Armadas terá já a forma de nomeação de um administrador hospitalar feita pelo ministério competente. Previsivelmente, o doutor Cravinho também há-se ser presidente da AR ou de um grupo folclórico por serviços relevantes ao país.
A situação política nacional é um enorme episódio dos “Simpsons”. Onde o tempo passa mas os personagens continuam iguais. Desde o primeiro episódio da série, em 1989, até hoje, Homer trabalha na mesma central nuclear e Bart e Maggie não mudaram. No mundo sucedem-se os acontecimentos, mas os personagens são como o Dorian Gray criado por Oscar Wilde: nunca envelhecem. Da mesma forma os candidatos que se remexem ao sabor do vento nestas legislativas nem sequer arriscam. Lembremos que em 1997 foi colocado à venda o primeiro livro da série de Harry Potter, um mês antes de Tony Blair entrar no nº10 de Downing Street. Blair e Potter tinham semelhanças: tinham ganho reconhecimento pelo charme e novidade. Contra todos os bruxos do mundo (Voldemort, no caso de Potter, Bin Laden no caso de Blair), eles queriam pôr em causa a busca da imortalidade dos seus inimigos. Blair herdava a nação de Thatcher e quando ganhou o poder no Labour em 1994 era considerado um inocente. Ganhou a alcunha de Bambi. Mas depressa foi considerado um Estaline. “Da Disneylândia à ditadura em apenas 12 meses. Não sei qual prefiro”, diria mais tarde o então primeiro-ministro.
Harry Potter queria servir o mundo dos mágicos contra o dos tenebrosos bruxos. Blair tentava seduzir: “nós somos os servos, eles – os eleitores – são agora os mestres”. Mas Blair mostrou quão ténue era (e é) a linha divisória entre os conservadores e os trabalhistas, numa época em que as ideologias eram dinamitadas pela economia de mercado e pela globalização. Mas, no início, Potter e Blair queriam derrubar as estátuas da previsibilidade. Mas hoje o que propõem os nossos políticos? A previsibilidade do costume.»
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