3.2.22

O Chega veio para ficar



 

«André Ventura fez uma má campanha, sem nunca ter saído da mobilização do núcleo militante. Esteve genericamente mal nos debates, não surpreendendo os opositores nem tendo neles o efeito que teve nas presidenciais. Não conseguiu, como em eleições anteriores, que os seus temas e tiradas fossem o centro das conversas e das preocupações. Só marcou a agenda pela negativa, com o PS a perceber a elevada rejeição causada pelo seu eventual apoio a um Governo PSD, na questão da governabilidade e acordos de governação.

No entanto, apesar de lidar com a mesma pressão da bipolarização das sondagens, transformou o Chega na terceira força nacional. É verdade que ficou longe dos resultados que as sondagens lhe davam há uns meses. É verdade que teve apenas mais uma décima do que considerou, em vésperas de eleições, o limiar de uma derrota. Mas lá tem 12 deputados (onze homens), que não deixarão de condicionar a forma como a direita fará oposição. E isso acontecerá num panorama que lhes será favorável, com o PS com maioria absoluta. Espero que o PS não caia na tentação em que caiu (não sozinho) na campanha: usar o combate ao Chega para seduzir ou assustar a esquerda, reforçando assim a sua importância. O combate faz-se na proporção do risco.

Muitos acreditam que é agora. Agora, quando se vir aquela tragédia de bancada, é que as pessoas vão perceber aquilo em que votaram. Agora, quando acontecer ali o que já acontece nas autarquias e todos desatarem à batatada, é que tudo se vai desmoronar. Sim, o facto de o Chega não ser, ao contrário de quase todos os seus congéneres europeus, um partido, mas uma pessoa com uma sigla ao lado, pode vir a causar muitos problemas a André Ventura. Mas ouvimos o mesmo com Trump e, um ano depois, aí está ele a condicionar os senadores e congressistas republicanos que continuam com medo de afrontar a ira da sua base eleitoral.

As pessoas não são parvas. Elas sabem no que votaram. Não acham que o Chega é um partido excelente, cheio de gente competente e empenhada que quer o melhor para o país. Votaram nele porque acharam que aquilo nos irrita. E este “nós”, o “sistema”, é suficientemente indistinto para ser impossível a defesa da honra.

É bom pararem de alimentar falsas esperanças: o Chega veio para ficar. Porque só um tipo de partidos sobrevive: o que ocupa um lugar politicamente pré-existente. É por isso que o BE ficou e o PAN provavelmente não sobreviverá. E é por se ter tornado redundante em relação ao seu espaço que o CDS morrerá. Como as empresas, um partido até pode criar o seu próprio mercado. Mas dificilmente sobrevive se não responder a uma necessidade que já lá está. Mesmo que o Chega viesse a morrer, outro tomaria o seu lugar. A extrema-direita meteu o pé na porta e ela já não se fecha.

Num país que conheceu uma ditadura de meio século seria estranho que todos fossem amantes da democracia. Na noite eleitoral fui mais longe e disse uma coisa que foi mal compreendida por algumas pessoas: que num país onde há tantas pessoas que estiveram na guerra colonial e que teve colónias até tão tarde seria difícil não existir extrema-direita. Houve quem depreendesse, talvez por culpa minha, que dizia que todos os ex-colonos (a que depreciativamente chamam “retornados”) e, mais absurdo ainda, que a maioria dos ex-combatentes são de extrema-direita. É assunto de que falei vezes que chegassem para não haver equívocos.

Os que viviam nas colónias e viram a sua vida virada do avesso pelo fim tardio do império são atores do encontro de biografias pessoais com a História. Essas vidas raramente corresponderam a escolhas políticas conscientes. Essa experiência poderá ter moldado as suas convicções, mas nem sempre das formas mais óbvias e unívocas. Quanto aos que foram atirados para a guerra, são as maiores vítimas de um regime cego empenhado num colonialismo anacrónico.

A única coisa que disse, ou que queria dizer, é que a experiência tardia de colonialismo provocou muitas vítimas, claro, mas também saudosistas e ressentidos. Mas, acima de tudo, um trauma que deixou uma história por debater. E que regressa pela voz dos piores intérpretes.

A isto juntam-se algumas bolsas territoriais para quem a relação com a comunidade cigana é vista como um problema. A coincidência de votações elevadas no Chega em todos os concelhos com maiores comunidades ciganas já tinha sido notada nas presidenciais, em concelhos como Moura ou Monforte, mas também, numa escala diferente, na Moita ou no Seixal, em plena Área Metropolitana de Lisboa, ou no Entroncamento, distrito de Santarém. O que, no entanto, não pode deixar de ser visto com uma dupla perplexidade.

A primeira, é que esse problema, se quiser ser visto dessa forma, não tem nada de novo. É verbalizado como tal pelo menos desde que eu me lembro de existir. Pode dar-se o caso, bastante habitual na política e especialmente quando a extrema-direita ganha força, que uma tensão que sempre existiu e que a sociedade vai gerindo se tenha transformado num problema político (carregado de caricaturas) aparentemente irresolúvel quando é verbalizado como tal.

A segunda perplexidade tem a ver com o peso residual da comunidade cigana (próximo de 0,5% do total da população) em comparação com a centralidade que ganhou no discurso deste partido. Imaginem que, como os franceses, havia tensão com uma comunidade como a muçulmana, que representa quase 10% da população. Vencia as eleições?

O resto é semelhante ao que se passa por essa Europa fora. Só fantasias sobre a excecionalidade dos portugueses, mais tolerantes, moderados e menos racistas, poderia fazer acreditar que as coisas não chegariam cá. Chegaram, como todas chegam, com umas décadas de atraso.

As características sociais e culturais dos eleitores da extrema-direita são variáveis. Teria cuidado com conclusões demasiado precipitadas a partir de um dado objetivo – que, exatamente ao contrário da IL, o Chega consegue o voto nos concelhos com menor poder de compra. Até porque os concelhos com menor poder de compra também são os mais abandonados pelo Estado e a causa do voto pode ter mais a ver com isso. Em França as regiões mais abandonadas e deprimidas votam mais na extrema-direita.

O Chega também teve mais votos onde há mais benificiários do RSI, que Ventura trata como subsidiodependentes e a quem quer reduzir o apoio social. É provável que tenham sido estas pessoas a votar no Chega, ou os seus vizinhos, um pouco menos miseráveis? A realidade é sempre mais complicada. Até porque o Chega também consegue resultados acima da média (nacional e distrital) num concelho como Cascais ou nas freguesias das zonas mais ricas de Sintra. Não sei se são os “miseráveis” que votam no Chega. Não sei que eleitores foi buscar à abstenção e por isso evito “achismos”. Sei, porque isso é verificável, que uma parte do seu eleitorado vem direto do CDS.

As preocupações dos eleitores que votam no Chega por desconforto social (e não mera convicção política) devem ser ouvidas. A esquerda, que tem o dever de representar aqueles que o “progresso” deixa para trás – e não, como alguma esquerda moderna acha, os ganhadores da globalização –, deve tentar perceber porque não os representa. Porque substituíram a sua revolta social pelo ódio ao ainda mais pobre. E deve compreender a dinâmica que leva ao voto da classe média mais baixa, com todas as suas expectativas goradas, em forças como esta. Mas deve evitar o paternalismo que desresponsabiliza este voto. Que o deita no divã, lhe dá tratamento especial, infantilizando estes cidadãos, como se não soubessem o que fazem, premiando-os com uma atenção redobrada. Como li numa rede social, entre o “coitadismo” e a diabolização destes eleitores há um mundo.

Devemos perceber os sinais de decadência das democracias, nunca nos devemos colocar na posição que faz dos democratas devedores perante os que desistiram dela. Como se fossem eles, menos exigentes do que todos nós com a qualidade dos que elegem, os credores das nossas falhas.

Os eleitores do Chega não são todos fascistas, apesar de alguns o serem. Não são todos racistas, apesar de muitos o serem. Não são todos homofóbicos, apesar de quase todos o serem. Mas há uma coisa que todos são: adultos. E, como adultos, cúmplices. Nenhuma daquelas pessoas se choca o suficiente com o que é dito por Ventura para não ser capaz de votar nele. E é bom recordar que a esmagadora maioria dos que se sentem desconfortáveis com o caminho que leva o país nunca pôs a hipótese de votar em Ventura. É, bem de longe, o político com a maior taxa de rejeição. Infantilizar os seus eleitores é desvalorizar todos os que são mais exigentes.

Diferente é perceber que a democracia tem de ser defendida com mais do que um “não passarão”. Tem de ser defendida com uma luta do outro lado. Dos que, com os valores certos, põem em causa o “sistema”. Não o sistema democrático, mas o sistema económico que cristaliza e aprofunda as desigualdades. A forma de combater os inimigos da democracia não é pedir-lhes desculpa, como se lhes tivéssemos falhado. É garantir a representação justa àqueles a quem a política, o Estado e a economia falham.

E é por isso que o meu maior adversário, em nome dos valores mais básicos da decência, até pode ser o Chega. Mas o meu adversário nas lutas que são determinantes para impedir que este fenómeno se descontrole é a Iniciativa Liberal. Não pelo que fez – por isso responsabilizo PS e PSD. Mas pelo que programaticamente representa.»

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