«A justificada indignação com a invasão da Ucrânia e a comoção com a aflição de quem foge dos bombardeamentos fez com que se levantasse uma onda de solidariedade. Realizaram-se múltiplos concertos, recolhas de bens e de fundos. Houve pessoas, que, em gestos de voluntarismo, foram de carro até países que fazem fronteira para oferecer apoio. Outras dispuseram-se a acolher refugiados ucranianos em sua própria casa. Muitas disponibilizaram-se como voluntárias sem saberem bem como poderiam ajudar.
Este ímpeto merece aplauso e reconhecimento. Mas como bem sabe quem acompanha estes fenómenos há mais tempo, nenhum acolhimento se faz apenas de gestos voluntariosos, de impulsos que podem ser tragicamente passageiros ou de redes informais sem escrutínio. São quase quatro milhões de pessoas que já chegaram a países da União Europeia vindas da Ucrânia e o número pode duplicar. Em Portugal, foram feitos quase 24 mil pedidos de proteção temporária até agora. A solidariedade não pode nem deve ser desperdiçada neste contexto. Mas se não a organizarmos, corremos o risco sério de somar novos problemas onde devíamos construir soluções sustentáveis e de estar a permitir que haja quem se sirva da retórica do apoio como biombo para as piores práticas.
Já tínhamos tido a ocasião de testemunhar o oportunismo do neonazi Mário Machado que, com a cumplicidade de uma juíza, simulou arvorar-se em “combatente humanitário” para escapar às medidas de coação da justiça portuguesa. Ou de um gestor que salivou com a possibilidade de explorar o trabalho de refugiados em desespero. Mas o problema está longe de se ficar por estes casos isolados.
Esta semana, a Comissária Europeia Ylva Johansson veio alertar para o risco sério de tráfico de seres humanos nas fronteiras da Ucrânia, lembrando que, mesmo antes da invasão russa, os ucranianos já se contavam entre as nacionalidades com maior número de vítimas destas práticas na União Europeia. Por todo o continente, sublinhou a Comissária, as organizações que trabalham com refugiados têm chamado a atenção para o aumento de “carros suspeitos que vão buscar mulheres e crianças”. A desigualdade e a discirminação no tratamento de diferentes refugiados, nomeadamente na Polónia, tem sido também exposta.
Em Portugal, a Plataforma para os Refugiados exprime hoje, no Público, a mesma apreensão a propósito de “caravanas que trazem menores não acompanhados sem informação certificada sobre familiares com quem os deixar”. A responsável pela proteção de menores no nosso país, Rosário Farmhouse, já tinha advertido, no mesmo jornal, para o facto de, em contexto de guerra, haver “uma enorme probabilidade de existirem equipas organizadas de tráfico de crianças, e de circunstâncias que separam indesejavelmente as famílias”. O Jornal de Notícias, por seu turno, deu conta de que “os refugiados ucranianos chegam a Portugal sem alojamento, alimentação e empregos”, porque as dezenas de voluntários portugueses que viajaram até à Polónia a título particular só podiam dar garantia de transporte.
A onda de solidariedade espontânea, capaz de resgatar algumas pessoas, tem riscos e não devemos deixar de os enfrentar desde já. Situações de dependência, de desgaste, pessoas que ficam na rua de um dia para o outro por cansaço ou desistência das famílias de acolhimento, sem que haja procedimentos estabelecidos e uma resposta pública capaz. É urgente, neste momento, combater a exploração da fragilidade do outro (tráfico, tentativas de extorsão, intenções de adoção ilegal, abuso laboral, etc.) e colocar no terreno respostas consistentes organizadas pelo Estado (central e local), que garantam direitos para lá dos expedientes informais de compaixão mais ou menos circunstancial. É aliás um dos contributos mais importantes que podemos dar a quem está a sofrer com a guerra - qualquer que ela seja. É um contributo que ficará como exemplo. E não é menos do que isso que eles e elas, sem exceção, merecem de nós.»
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