7.4.22

Entrou na FDUL um século que por lá se desconhecia

 


«O Conselho Pedagógico da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) criou uma comissão paritária de três alunos e três professores que criou um canal aberto a relatos de más práticas dos docentes. O resultado foi perturbante para quem nada sabe da casa: em apenas 11 dias, denúncias de 29 casos de assédio moral, 22 de assédio sexual, oito práticas discriminatórias de sexismos, cinco de xenofobia e racismo, um de homofobia. No total, 70 denúncias, 50 delas validadas como relevantes. A maior pare dos casos de assédio aconteceu presencialmente, mas também há utilização das redes sociais do e-mail. Incluem 31 docentes, o que corresponde a cerca de 10% dos professores a assistentes.

A decisão de criar este canal não veio do nada. E a prova é que ninguém ficou surpreendido. Casos em que houve muitas queixas e até assunção de culpa não tiveram consequência para além de pedidos de desculpa. E os mecanismos existentes pareciam não resultar. Porque o problema é mais profundo. E não serão manuais de boas práticas que o resolverão. A cultura de impunidade, numa faculdade onde se ensina a lei e a sua aplicação, resulta de uma cultura de poder. Que vai muito para lá do assédio.

A punição dos responsáveis e o acompanhamento das vítimas é fundamental. Mas o mais importante é o aviso à navegação que dá o primeiro sinal, ainda tímido, de que a cultura que sobreviveu a décadas de democracia está finalmente em perigo. E isto só acontece porque as alunas (e também os alunos) da FDUL não nasceram na FDUL, não foram educadas na FDUL, não foram formatadas pela FDUL. Vêm de um país e de um mundo que mudou enquanto a FDUL permanecia parada.

Estou a dizer que é uma faculdade de assediadores e abusadores? Não. A maioria estará longe disso. Mas, porque tenho várias pessoas (muito) próximas que passaram por lá há trinta anos e recentemente (sem que nada tivesse mudado nestas três décadas), sei que a cultura desta faculdade é indutora do abuso. E não me refiro apenas ao abuso machista. Esse é a ponta do iceberg, por ser mais destemido, temerário e alarve. Mais transversal e aceite na cultura patriarcal portuguesa. Falo da cultura de ensino, de avaliação, de autoritarismo e de endogamia. Uma cultura que recusa a autonomia dos alunos e o uso do poder com responsabilidade e moderação. Que promove a competição tóxica em vez da cooperação. A FDUL, vamos abreviar, não tem uma cultura democrática. Não é a única. Mas, talvez pela sua visibilidade, é das mais flagrantes.

É interessante pensar que a FDUL foi e é uma das principais incubadoras da elite política portuguesa. Perceber como representa muitos dos seus vícios e tiques. E é perturbante pensar que é dali que saem muitos dos nossos juízes e procuradores. Ajuda a explicar muitas coisas que nos chocam numa justiça que parece parada no tempo.

Li, numa rede social, uma aluna a queixar-se que um professor teria dito numa aula que não deviam protestar porque davam má imagem à faculdade. Educação para a cidadania, mas ao contrário. Pois é isso mesmo que devem fazer: dar má imagem da faculdade. Porque só isso levará a instituição a reagir. E a trabalhar para mudar a sua cultura e afastar os verdadeiros responsáveis por essa má imagem. A boa imagem consegue-se com transparência e esforço, não com opacidade e cumplicidade.

Isto não se passa, obviamente, apenas nesta faculdade. Um estudo de 2019, da Federação Académica de Lisboa, sinalizava que o assédio é um problema relevante nas instituições de ensino superior. O que aconteceu à FDUL acontecerá a cada vez mais instituições portuguesas, académicas ou não. Uma nova geração que cresceu num mundo globalizado, numa democracia madura e numa sociedade mais igualitária vai-lhes entrar pela porta adentro, mudar os móveis e partir algumas janelas. Antes de tudo, serão, como estão a ser, um tipo de mulheres que estes professores nunca conheceram, que não foram ensinadas a ignorar e sorrir quando são assediadas. Mas, em geral, jovens que não compreendem o mundo que estes gerontes, alguns novos demais para o serem, tentam preservar. Boa altura, quando atingimos mais anos de democracia do que de ditadura, para isto acontecer.

Fica uma nota positiva: apesar de tudo, esta comissão paritária e este canal foram criados pela própria FDUL. Isso aconteceu, graças à existência de um Conselho Pedagógico mais plural, a que concorreram várias listas. O que prova que a democracia faz milagres, mesmo em corpos caducos. Até os pode rejuvenescer.»

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