4.5.22

Amazon: dança para o ditador das estrelas, que és livre de ser escravo

 


«A Amazon, de Jeff Bezos, só não é das empresas mais obscenas porque, nesta matéria, o inferno é o limite. Estas empresas globais são o que mais se aproxima da fase inicial da industrialização. A total amoralidade dos seus proprietários resulta de taxas de lucro que a história nunca conheceu e de uma acumulação de riqueza (e de poder) que torna os Estados incapazes de lhes impor as regras mais básicas.

A falsa autonomia dos que já nem têm direito a ter vínculo com aqueles para quem realmente trabalham – cinicamente tratados como empresários da sua miséria ou ao serviço de pequenas empresas que dependem de um único cliente – resulta da ideia de que a nossa liberdade individual depende da absoluta liberdade do patrão nos escravizar. Começando por recusar ser nosso patrão.

No caso da Amazon, são conhecidas as condições de trabalho indignas exigidas aos seus entregadores. Por falta de tempo, pausas e instalações sanitárias que possam usar têm de urinar em garrafas de água. São responsabilizados quando ficam presos num nevão. Sacrificam a sua segurança quando os tempos de entrega exigidos são virtualmente impossíveis de cumprir.

Mas como se não bastasse a exploração levada ao extremo, apareceu, nos Estados Unidos, uma nova moda: clientes que põem nas suas portas pedidos para que os entregadores dancem ou façam algumas graças. Para quê? Para os filmarem através de câmaras de vigilância doméstica como o Ring e publicarem no TikTok.

Alguns dos entregadores fazem o que os clientes pedem com medo de reclamações. Os motoristas são rastreados por câmaras com inteligência artificial e aplicações que os monitorizam e atribuem uma pontuação no fim de cada semana. E são avaliados pelos clientes. Se houver muitas críticas negativas, podem ser demitidos. “Tecnicamente, se o associado de entrega não seguir as instruções, pode ser prejudicado nas suas métricas”, disse um proprietário de uma empresa de entregas do Midwest dos EUA à Vice. Para além da humilhação, perdem o pouco tempo que têm para as entregas.

Entre as muitas publicações que se tornaram virais, fica esta: "Deixei uma placa pedindo aos motoristas para dançarem. Este tipo foi incrível! Alguém o conhece?" Há pessoas estupidas em todo o lado e a empresa não tem culpa disso. Por acaso até poderia banir aquele cliente, diria eu, se a coisa não fosse bem mais grave. É que a própria conta oficial da Amazon deixa comentários nestas contas: “poppin’ and lockin’ while box droppin’” (numa tradução muitíssimo livre, “a dançar e a gingar na hora de entregar”). Ou seja, é a Amazon a incentivar, porque o cliente tem sempre razão mesmo quando é um animal, a humilhação daqueles que lhes entregam as encomendas.

É verdade que ninguém força estes trabalhadores a dançarem. Como escreve Arwa Mahdawi, no jornal "The Guardian", “há uma linha ténue entre exigir oficialmente algo aos seus funcionários e incentivá-lo fortemente”. Também ninguém os força a trabalharem para a Amazon. Esta é a “beleza” deste tempo: ninguém força ninguém a nada. Todos são absolutamente livres de serem escravos ou morrerem de fome. A liberdade deste capitalismo sem freios é essa mesmo: todos somos absolutamente livres, sem qualquer limite. Quem tiver mais poder esmaga o outro, porque assim dita a liberdade de cada um. Tanto pode ser cliente como patrão. Exatamente como na selva.

E esta é uma das razões pelas quais, para além do desprezo que tenho por tudo o que simule empreendedorismo para fugir aos deveres de uma relação assalariada, sou militantemente contra todas as formas de avaliação particular de trabalhadores (diferente da avaliação do serviço de uma empresa). É um sistema perverso que transforma cada cliente num pequeno ditador mimado. A China já transferiu isto para a convivência geral, com os seus créditos sociais. As ditaduras estão a aprender bem com as técnicas de vigilância orwelliana coletiva que o nosso “mundo livre” tem para oferecer. Entre a selva e a tirania, o passo é menor do que parece.

Claro que haverá sempre selvagens que abusam do poder que têm. É por isso que temos leis e vínculos laborais. E é por isso que o despedimento não é livre. Para que as empresas para as quais trabalhamos tenham deveres e os nossos patrões não se tornem nossos proprietários. E quando a alternativa é o desemprego, não me venham dizer que somos livres de aceitar a fome no lugar da escravatura.

Mas a coisa chegou a outro ponto: o cliente passou a ser, ele próprio, um pequeno déspota. E pode fazer o que desde criança aprendemos a reprimir em nós: usar o poder arbitrário para diminuir o outro. Com as redes sociais, até o pode exibir a um mundo que, mesmo que condene, garantirá a viralidade e a fama. Nas empresas, havia a possibilidade do trabalhador dizer não e ninguém o poder despedir por isso. Agora, está nas mãos do ditador das estrelas. No fundo da cadeia alimentar, ponto para ser servido à turba que sempre aí esteve, faminta pela indignidade do mais fraco.»

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