«Antes da pandemia Lisboa já podia ostentar o título de cidade do ruído. Depois surgiu o vírus e o rumor de fundo, essa segunda pele de uma cidade, diminuiu, impondo-se uma amena temperatura sonora. Agora que regressamos à chamada “normalidade”, o ruído, que apesar de tudo remete para alguma estruturação, foi superado. O patamar agora é outro.
O que temos hoje já não é isso. É barulheira, algazarra, cacofonia, um gigante cagaçal, por entre música, aviões, berbequins, carros, motores e, agora que o turismo regressou a todo o vapor de forma sôfrega, excitações a toda a hora, em qualquer lugar, consoante os diferentes interesses económicos aí radicados. Para uma cidade que vive obcecada em ser “marca”, como se os seus habitantes fossem meros consumidores, abre-se aqui uma janela de oportunidade em termos de designações que ajudem à sua promoção. Lisboa, capital da chinfrineira, podia ser um excelente chamariz turístico. Ironizo, claro.
Já se sabe que, hoje, proliferam os discursos na ponta da língua sobre o ambiente. É o aquecimento global. É o ar e a atmosfera, o lixo, os plásticos, os oceanos. No meio, sempre esquecida, a poluição sonora. Há pouca sensibilidade cidadã. Uma ineficaz pressão pública concertada. Uma condescendência geral. Até alguma censura quando se fala do assunto, como se quem o fizesse fosse desmancha-prazeres. Um total e inacreditável alheamento político. Um fechar de olhos das autoridades. Até certo ponto, percebe-se. O ruído é imaterial. Parece passageiro. Associamo-lo a festa e prazer. Mas o problema existe e agrava-se cada vez mais, principalmente nos centros urbanos saturados, onde as fontes de barulho são múltiplas e omnipresentes, com efeitos graves, profundos e nem sempre perceptíveis na saúde física e mental (alterações de sono, problemas cognitivos, hipertensão e por aí fora).
Apesar da legislação existente, paira uma sensação de impotência. A fiscalização é ineficaz. O mapeamento do ruído assenta em medições quantitativas, esquecendo-se a experiência das pessoas. Não se contempla que são as baixas frequências que mais danos causam. Ou se é rico, e vive-se numa fortaleza acústica, ou vai-se resistindo como se pode (“põe tampões”, “toma um comprimido”, “muda de casa”, e outras coisas que tais, são os conselhos inúteis que se ouvem em contextos sociais). Quando se faz queixa às autoridades, o paternalismo é o mesmo. A polícia tem sempre algo mais importante para fazer. Os organismos municipais são inoperantes. Não há relação de confiança. A sensação é de impotência e abandono.
Viver no centro de uma cidade acarreta sempre algum desconforto. Não é de romantismo e de silêncio que aqui se fala. Aqui sugere-se um mínimo de equilíbrio. Nem sequer é de design sonoro eficiente de espaços públicos, como há em tantas cidades europeias. Estamos muito longe desses cenários. É apenas de não sacrificar o direito ao bem-estar dos cidadãos a qualquer preço, permitindo todos os abusos de indústrias e negócios. O afluxo de receitas é relevante para alguns, mas também é a sanidade de todos, num ecossistema frágil onde tudo está ligado.
Um dos muitos exemplos possíveis da situação actual acontece junto ao rio, entre o Cais do Sodré e Santos. Alguém durante o reinado de Medina teve uma grande ideia reservar aquela zona para diversão nocturna, num exemplo datado e esgotado de planeamento urbano, colocando ali três discotecas a funcionar ao ar livre. Repito: ao ar livre. O som propaga-se pelas colinas, sendo frequentes as queixas, inclusive, da outra margem, porque o som, pois é, também desliza pela água. Até às 7 da manhã, de quarta a sábado, é assim. Não satisfeita, a freguesia da Estrela resolveu, durante o Inverno, e agora nas semanas que antecedem os Santos Populares, instalar ali uma feira de diversões, todos os dias, até às 2 da matina. De maneira que até certa hora se ouve o Quero cheirar o teu bacalhau, Maria do Quim Barreiros em competição desenfreada com o tecno do lado, e depois leva-se com três discotecas a ver quem provoca mais alarido até de manhã. Há quem chame “animação” a isto. Para os que não pregam olho é só um inconcebível sofrimento.
De quem nos governa desejava-se apenas uma gestão estratégica, saber identificar tendências, antecipar soluções, ampliar modos de governação, com uma participação cidadã efectiva. Mas népias. A voragem e a chinfrineira mandam.»
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