3.5.22

O seu a seu dono: a vergonha e a culpa a quem viola...

 


«Foi entregue na passada quinta-feira, 28 de abril, na Assembleia da República uma petição que pugna pela alteração da natureza do crime de violação que, atualmente, para que motive o início de uma investigação criminal, implica a queixa da vítima no prazo de seis meses. Pretende-se que passe a crime público, ou seja, que possa originar um processo penal em virtude da denúncia de qualquer pessoa, sem aquele limite temporal, tal como já acontece quando seja praticado contra menores. A Convenção de Istambul (CI) assim exige que o façam as suas Partes, entre as quais se inclui Portugal.

A este propósito, importa dizer, sem pretensões de exaustividade, que, tendo em consideração vários fatores, inclusivamente os sentimentos expressos pelas vítimas de violência sexual, a publicidade do crime, sim, impõe-se, como aliás a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas vem defendendo desde a entrada em vigor da CI em Portugal, no ano de 2014.

Porém, salientamos, é fulcral que esta modificação se alie a iniciativas que fomentem o respeito pelos direitos das vítimas de crime no âmbito do processo penal, nomeadamente daquelas que, como as vítimas de violação, têm necessidades específicas de proteção.

Assim, cumpra-se efetivamente a legislação internacional e nacional – nomeadamente, o Estatuto da Vítima, criado pela Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro - e evite-se a repetição dos depoimentos e exames médicos, minimize-se o número de pessoas a quem têm de ser feitos e que os têm de fazer, privilegie-se a ação por parte de profissionais do sistema de justiça do mesmo sexo que a vítima, devidamente formados para o efeito, garanta-se o acompanhamento por serviços de apoio e assegure-se a ausência de contactos entre vítima e agressor no decorrer do processo penal, entre outras medidas essenciais.

O ataque às dimensões do corpo e da alma que compõem a sexualidade de alguém é dos atos mais hediondos e com impacto mais profundo e devastador na vida das pessoas.

A violação é perpetrada, na sua esmagadora maioria, contra mulheres e crianças. Estas vítimas descrevem, quando disso conseguem falar, entre outras tantas dores, a vergonha e a culpa que sentem pelo sucedido e que, entre outras razões, as impede de o revelar.

De que advêm estas emoções? Fará sentido que a mulher violada tenha vergonha de o ter sido? A criança violentada tem culpa de a terem ferido sem retorno?

Que se afirme, grite, bem alto e convictamente: não! Estas mulheres e crianças são quem sofre e necessita de reparação e proteção. A culpa pertence somente ao agressor.

Porém, ainda hoje, inclusivamente por via judicial, se impõe às vítimas de violência sexual a obrigação de se terem comportado de determinado modo: não ter saído ou caminhado naquela rua, não ter usado aquela roupa, não ter dançado, não ter bebido, não ter conversado, não ter consentido no beijo, no toque e depois… não ter gritado, não ter lutado, não ter ferido.

A vergonha e a culpa que transtornam as vítimas de violência sexual têm aqui a sua origem: na sociedade patriarcal que incutiu às mulheres, desde sempre, que a sua sexualidade era algo a reprimir, orientada somente para a procriação e a ser usada no interesse e por controlo do marido; que a mulher “séria” é recatada (logo, a que não é, sujeita-se à consequência de ser usada e maltratada); que os seus corpos não lhes pertenciam, mas sim aos seus maridos (e aos seus pais, que aceitavam entregá-las àqueles).

Neste ponto, realce-se que, conforme, por exemplo, sucessivos Relatórios Anuais de Segurança Interna têm demonstrado, a maioria dos crimes de violação é cometida por um familiar ou conhecido da vítima.

Face ao que dizemos, naturalmente, a generalidade das mulheres, quando confrontada, nomeadamente, com uma violação por um marido ou namorado, entende ou que estava a cumprir o seu dever, ou se tiver já discernido que não se trata de uma obrigação, que terá de sofrer e aceitar, porque ninguém nela vai acreditar. Nesta e noutras situações, compreensivelmente, também, ponderará e enumerará o que fez para que aquilo tivesse acontecido e como poderia ter conseguido outro desfecho. Em tantas outras, temerá pela sua vida ou de quem lhe é caro, caso revele o que aconteceu.

Este contexto, que urge alterar, conduz a que as vítimas de violência sexual não a denunciem e prossigam a viver a sua dor em silêncio, sem que a sua ferida seja reconhecida e tratada, sem que os seus agressores sejam punidos e impedidos de continuar a atividade criminosa e sem que o sentimento de justiça da comunidade possa ser satisfeito.

Para muitas vítimas de violação constitui uma agressão descrever o que viveram, agressão essa que nem querem conceber. Contar é verbalizar o escondido, é admitir que aconteceu e que “nada fizeram para o evitar”.

Surge, então, a questão, validamente levantada: fará sentido, sabendo disto, permitir que a denúncia deste crime seja feita por quem dele tenha conhecimento, ainda que a vítima não o deseje?

Maturada a pergunta, respondemos que sim.

Sim, porque importa tentar consciencializar as vítimas que sofrem ao reviver de que partilhar alivia o fardo, traz luz ao escuro e permite receber apoio.

Sim, porque se o Estado retirar da esfera de responsabilidade da vítima a iniciativa que leva à investigação do crime, reconhece a gravidade dos atos praticados para toda a comunidade, faz sua e pública a causa de defesa da liberdade sexual das mulheres e demonstra mover-se ativamente no sentido da responsabilização do agressor e da proteção da vítima.

Sim, porque alerta toda a sociedade para a urgência de travar esta criminalidade e dissuade possíveis agressores.

Sim, porque, em última análise, na generalidade das situações, por ocorrerem em contexto íntimo, a vítima será quem sabe o que aconteceu e dela dependerá o início da investigação e, sendo o crime público, não estará limitada pelo prazo de 6 meses para ser capaz da denúncia.

Sim, porque se pretende que no futuro as vítimas destes crimes não tenham vergonha, nem sintam culpa e ao invés, vejam com clareza que foram alvo de um crime grave, generalizadamente repudiado, se sintam protegidas e confiantes para o denunciar e buscar apoio e este lhes seja adequadamente prestado.»

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