7.5.22

Ou se ganha, ou se perde, e eu não quero perder o que se perde

 


«Este artigo começou por ser outra coisa, uma preocupada, urgente, incomodada reacção ao caminho perigoso que nos EUA tem levado o Partido Republicano a tornar-se um partido conservador extremista, bebendo fundo em tudo o que há de mais reaccionário, desigual, racista, antidemocrático e iliberal, subversivo da legalidade e insurreccional. A sua “moderniação” é apenas a aceitação de candidatos do QAnon e outros grupos separatistas e supremacistas brancos, cada um mais reaccionário e imaginativo na conspiração do que outro. A gente pensa que eles já são isso tudo e aparece logo outro pior. Trump fê-lo e está a fazê-lo assim e os seus servos, que dependem da sua aprovação para ganhar as primárias republicanas, renovam todos os dias esse caminho antidemocrático e sem lei. E quanto ao Supremo Tribunal americano, cuja história está longe de ser famosa desde a guerra da secessão, que ele ajudou a provocar com a decisão em Dred Scott v. John F.A. Sandford, está hoje politizado pelos republicanos, que fizeram toda a série de manigâncias para garantir uma maioria de juízes, que de um modo geral mentiram sobre as suas intenções aquando das audições para a sua nomeação sobre as suas posições sobre a histórica decisão de Roe vs. Wade, que desde 1973 defende o direito das mulheres ao aborto.

Acresce que nem sequer nesta questão da Ucrânia os republicanos são mais seguros do que os democratas, um dos raros casos em que estes são mais consequentes e firmes, num Partido Democrata que consegue não ser isto em matéria nenhuma. Trump, o amigo e admirador de Putin (e provavelmente mais do que isso), e que atrasou o envio de armas para a Ucrânia, chantageando-os para arranjarem “lixo” sobre o filho de Biden, é a última pessoa em quem confiar na guerra da Ucrânia.

a isto tão “americano” até que escrevi a palavra Ucrânia, e deixou logo de ir por aí. É que nem posso ouvir falar de “paz”, quando esta palavra significa apenas “rendam-se”, dêem a Putin o que ele quer para pavonear no desfile da vitória. Fechem os olhos da cara para não ver a realidade brutal, que destrói, assassina, viola, mata e fere, agora mesmo na Ucrânia. É do domínio da força, da violência sem adversativa. Vem do “outro” lado, vem do inimigo. Hoje, como nos últimos dias, um civil é preso numa cidade ocupada, espancado, e encostado a uma parede ou no meio da rua, recebe um tiro de Kalashnikov no peito, e fica a morrer. Ou num apartamento de família, um míssil entra pelo prédio dentro, derruba a fachada, estilhaça os vidros, incendeia as roupas, destrói os locais das famílias, as memórias, os bairros e as suas relações. Se lá estiver gente dentro, morre ou fica com o corpo destruído.

Não, isto não se passa nos EUA, nem em bom rigor em nenhum sítio do mundo. Podemos ir à Síria, a Gaza, ao Sudão, ao Iémen, a todos os locais de guerras no mundo e nada se compara ao que acontece hoje na Ucrânia. É que não há encenação, desinformação, fake news, “nevoeiro de guerra”, nada que possa esconder, minimizar, justificar o que se passa. Abram os olhos da cara e fechem os olhos da obediência e da hipocrisia de gritar pela “paz”, porque nem sequer são os olhos da ideologia, porque aqui não há nenhuma.

Eu sempre escrevi que não era a democracia versus a autocracia que estava em causa na Ucrânia, nem disse alguma vez – e lembrei-o desde início do conflito – que o Governo ucraniano, Zelensky à frente, é flor que se cheire. Mais: tenho reservas que se abandonem os critérios de entrada para a União Europeia para a Ucrânia, asneira que já se paga caro com outros países do centro e Leste da Europa, ou noutro sentido com a Turquia, e fui, presumo, o primeiro a falar na televisão do Batalhão Azov, e dos irmãos nazis e nacionalistas extremos da Rússia e da Ucrânia, tão parecidos que eles são. Mas, chegados aqui, a invasão da Ucrânia sem qualquer provocação imediata, sem qualquer objectivo que não seja a submissão, sem qualquer respeito pelos civis, pelo direito, pelas leis da guerra (que também existem), assente numa política de força e brutalidade, ameaça a minha liberdade. Sim, a minha liberdade. E a paz sem aspas.

Claro que no modo como andam os costumes, eu digo isto porque alguém me paga para dizer, ou porque não quero perder os meus “lugares” na comunicação social, ou porque no fundo sou um “fascista” vendido ao imperialismo americano, que não percebe as razões alheias. Alheias de quem? De Putin, do “povo russo”, dos ucranianos pró-russos (que os há), dos tchetchenos, da causa anti-imperialista e antibelicista dos amigos da “paz”? É preciso ter aquilo a que os portugueses chamam “lata” para andar a dizer isto, mas há quem o faça.

Por isso, estou todos os dias mais belicista. Essa força bruta tem de ser defrontada e duvido que haja outro modo de o fazer senão com a força. E não me venham com a história do “pensamento único”, porque ao pensamento que é verdadeiramente livre e não anda a mando de ninguém basta andar a mando do bom senso para perceber com meridiana clareza o que se está a passar. Putin é um criminoso e a política da Rússia que ele conduz é um exemplo de tudo aquilo que quem ame a liberdade, a vida das pessoas comuns, e tenha uma gota que seja do shakespeariano “milk of human kindness” recusa, e sabe que com isto não é possível nem “entender”, nem pactuar a não ser por covardia, nem negociar.

Isso mesmo, nem negociar.»

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