3.6.22

Batalha pela ordem mundial

 


«A primeira coisa que se percebeu quando a Rússia invadiu a Ucrânia foi que a guerra não dizia apenas respeito a Kiev. O que estava em causa era o futuro do sistema internacional e da ordem mundial. Moscovo, apoiada por Pequim, desafiava a Pax Americana, a ordem mundial liberal liderada pelos Estados Unidos desde o fim da Guerra Fria.

Os combates travam-se na Ucrânia, mas têm uma repercussão mundial. Do futuro, pouco se pode dizer. O que hoje se discute é a marcha da guerra, que voltou a endurecer, e o longínquo quadro de uma negociação de paz. O modo de resolução da guerra, isto é, um acordo de paz, é ainda um enigma. Ninguém sabe o que quer ou pode alcançar, dada a incerteza dos combates e das sanções internacionais.

Desenham-se cenários, com diferentes consequências geopolíticas. Um analista russo, Andrey Kortunov, avança três hipóteses. O triunfo da Ucrânia levaria a uma “Rússia domesticada” e permitiria ao Ocidente “lidar mais facilmente com a China”. Admite também uma “desescalada” por exaustão de ambas as partes. Uma solução “menos imperfeita”, mais equilibrada para Rússia do ponto de vista do autor, abriria um horizonte diferente: “Se um acordo com Putin for possível, um acordo com Xi Jinping seria a continuação lógica”. Se o conflito se prolongar, podemos esperar “mais caos nos próximos anos”. Não são cenários muito originais.

Tanto a China como a Rússia estão determinados a criar uma ordem global pós-ocidental. Por sua vez, os americanos desistiram de ser “o polícia do mundo” mas não abdicaram da sua vontade de hegemonia. Depois de terem voltado as suas prioridades para o Indo-Pacífico, os EUA regressam parcialmente à Europa e Moscovo sofre um desaire com o reforço da NATO, que queria esvaziar, na Europa de Leste.

A China, escreve a analista Angela Stent, da Brookings Institution, “quer uma ordem em que tenha um maior papel na definição da agenda mundial”. Ao contrário, a Rússia de Putin, potência revisionista, aposta no arbítrio e numa ordem com menos regras.

Os analistas adivinham um declínio do estatuto internacional da Rússia, independentemente do desfecho militar da guerra. Moscovo sobrestimou a sua força. Os erros de cálculo de Vladimir Putin e as primeiras semanas de guerra exerceram uma influência devastadora. Moscovo aparece doravante como “sócio menor” de Pequim.

Note-se que Washington e Pequim não se quiseram imiscuir directamente na guerra ucraniana. Ambas as superpotências lêem o conflito em termos de ordem e equilíbrios mundiais.

O Ocidente e o “Resto”

Angela Stent abre uma outra pista ao analisar a reacção do “Resto”, do mundo não ocidental, sobre as sanções e a condenação da invasão. Putin enganou-se em quase tudo, excepto num ponto: se a Rússia ficou isolada no mundo ocidental, não foi condenada nem sancionada pelo mundo não ocidental. Em parte, isto deve-se ao longo investimento diplomático da Rússia no Médio Oriente, na Ásia, na América Latina e na África.

Quer isto dizer que o mundo não esteve unido na condenação da agressão russa. “A relutância do ‘Resto’ em condenar a Rússia de Putin irá complicar a capacidade do Ocidente em criar laços e aliados, inclusive quando a guerra estivar terminada”, afirma Stent. É um factor que no futuro pesará. O “Resto” representa mais de metade da população do mundo.

Uns países reagem por uma histórica alergia aos Estados Unidos, outros, aliados dos americanos, por razões nacionais. A Rússia tem intensas relações com todos os países do Médio Oriente, desde a Síria que controla à sunita Arábia Saudita ou ao xiita Irão. Mas também não foi condenada pelos Emirados Árabes Unidos, pelo Egipto ou por Israel. Porquê Israel? Os iranianos estão na Síria, mas quem manda são os russos, e Israel quer poder agir na Síria sem pôr em perigo a sua fronteira norte. Na América Latina, Bolsonaro gosta de Putin e o México recusou uma mensagem comum da América do Norte, com os EUA e o Canadá.

A Índia é caso especial. Por um lado, participa na Quadrilateral (Quad) com os Estados Unidos, Japão e Austrália. Por outro, precisa do velho aliado russo para equilibrar as relações com a China, a razão básica da sua opção. Mas também há interesses: indianos e chineses contam adquirir o petróleo russo a preço “especial”. A Rússia, embora perdendo estatuto, não é um “pária mundial”, graças à China e à Índia.

Embora indiferentes ou amigos de Moscovo, são os países da África e do Médio Oriente os que mais depressa vão sofrer o efeito do bloqueio do trigo ucraniano pelos russos, ou seja, a fome. Esta guerra tem múltiplas frentes.

A fadiga de guerra

As guerras acabam pela derrota de uma das partes ou quando ambas percebem que nada ganham em continuar os combates. No fim, há negociações. O panorama não é optimista. A Rússia quer alargar a ocupação de territórios, para os anexar ou para reforçar a sua posição negocial. Putin tem de arranjar uma qualquer proclamação de vitória.

A posição de Zelensky é muito difícil. Para negociar, será pressionado pelos países amigos a fazer concessões territoriais, o que é difícil fazer aceitar aos ucranianos. De resto, trava-se uma prova de força ou de resistência. “A Rússia não está em condições de combater muito tempo, porque se esgotam os recursos humanos”, diz um analista russo. Por sua vez, Moscovo aposta na “fadiga de guerra” que se começa a manifestar no Ocidente, escreve o Financial Times.

Enfim, o desfecho desta guerra determinará a ordem mundial e, até, alguns princípios civilizacionais.»

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