5.6.22

D. Afonso III e as ciclovias de Moedas

 


«Estou em crer que, quando D. Afonso III de Portugal mandou a corte fazer as malas e mudar-se para Lisboa, estava longe de imaginar que 767 anos mais tarde se rasgariam vestes por avenidas fechadas ao trânsito aos domingos e por troços de ciclovia abolidos ou em vias de abolição. No entanto, também é possível que eu esteja enganada e que o rei, conhecido pela sua inteligência e pela prosperidade a que conduziu o país, tenha previsto esta possibilidade. Imagino-o até no seu leito de morte, de mão dada com D. Dinis, seu filho primogénito, a sussurrar: “Dinis, deixa a capital sossegada em Coimbra que esta gente aqui de Lisboa é toda muito umbiguista.”

E como toda a gente sabe que nunca se nega o último desejo de um rei, D. Dinis fez o que lhe foi pedido. Ele e todos os reis que se seguiram, já que, é sempre curioso recordar, nunca na nossa história e até aos dias de hoje foi oficializada de forma documental a transferência do título de capital de Coimbra para Lisboa.

Eu adoro Lisboa, registe-se. Tirando as noites de Santos Populares que me agravam sobremaneira a claustrofobia, Lisboa é a minha cidade sonhada e gosto dela porque sim. Gosto de como o Tejo, tão menos significante em Espanha, se torna grandioso aos pés da cidade de mágica luz. Gosto do fado e dos pastéis de bacalhau. Gosto da paz de Belém e de como ali, naquele bocadinho, o mundo me parece infinito.

Mas, caramba, que não há meio de uns quantos iluminados se convencerem que a Ponte 25 de Abril não é uma fronteira do país. E vai daí que aqui andamos nós a assistir, ainda que incrédulos, a debates muito acesos sobre uma ciclovia que nem sabemos bem onde fica.

E estes debates aparecem em programas de opinião, de comentário e dominam as redes sociais. Assim mesmo, como se uma rua de Lisboa fosse um problema de todo o país. Assim mesmo, como se à esmagadora maioria dos portugueses interessasse conhecer os contornos da novela que opõe Moedas a ciclistas, ciclistas a automobilistas e peões ao mundo.

Antes que me venham com a conversa do sentimento de inferioridade e do recalcamento deixem-me lá dizer que me orgulho das minhas origens, metade construídas na fonte da Praça do Giraldo e a outra metade nas pedras do Real Alcázar de Sevilha. E nunca me senti inferiorizada por não pertencer à capital, que sempre me acolheu como aquela música bonita, com a Mariza, o Paulo Flores e a Roberta Sá, que há uns anos passava sempre nos aviões da TAP: de braços abertos. Mas não percebo, não percebo mesmo como é que de um tema absolutamente “comezinho” de política local se faz um caso nacional em que já não há cão nem gato que não tenha uma opinião a dar, ainda que, com sorte, nunca tenha passado nos locais em discussão.

Há dias escrevi no Twitter que enquanto mais de meio país se debate com a transferência de competências que ameaça arrasar financeiramente as autarquias, há uns quantos que parecem muito mais preocupados com um troço desaparecido de ciclovia. E é claro que veio a turba. E é claro que se inflamou. E é claro que fui acusada de não compreender a política ambiental e a importância da sua defesa. E é claro que me perguntaram logo se era avençada de Carlos Moedas ou se aqui, no Alentejo, já tínhamos ouvido falar em mobilidade sustentável. Logo a nós, reis das carroças e das parelhas de bois.

Mas, brincadeiras à parte, acredito verdadeiramente que a importância nacional que damos a estes temas mostra bem o tipo de país que somos: um país que dá demasiada importância ao que não a tem, que é atraído pela trivialidade como os mosquitos para a luz e que tem um prazer particular em viver numa permanente silly season.

Reparem, nós vamos a Lisboa. Aliás, nós, especialmente no interior sul, precisamos de Lisboa. Há serviços que só podemos encontrar na capital e cuidados de saúde que são exclusivos das três maiores cidades do país. Todos os dias centenas de ambulâncias percorrem as nossas estradas para levar a Lisboa uma parte substancial dos doentes oncológicos da região sul. Nós podemos não viver lá, mas sabemos bem a importância que a cidade tem nas dinâmicas e destinos do país.

E obviamente que nos solidarizamos com os 24% de utentes inscritos sem médico de família na região, que sabemos que os transportes públicos de Lisboa interessam ao país inteiro que lá vai, nem que seja de visita, e que não somos insensíveis às causas dos lisboetas.

Mas, sim, somos claramente insensíveis ao drama das ciclovias ou, pelo menos, de uma parte delas. E é bastante ingrato que se debata tão aprofundadamente e com tanto espaço na comunicação social um tema tão pouco relevante e que, depois, problemas bastante mais graves não consigam nunca ter destaque no debate público.

A descentralização de competências está aí e, cada vez mais, boas intenções à parte, parece que só será benéfica para o Governo central que, em questões de aparente menor monta, sacode a água do capote para cima das autarquias. Começa a pairar sobre a cabeça dos autarcas a sensação de que o Governo se prepara, mais do que qualquer outra coisa, para descentralizar a dívida.

Luísa Salgueiro, presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses, vai fazendo o que pode para chamar a atenção para o problema. No Porto, Rui Moreira, luta para não ter de ceder. E em Lisboa, Carlos Moedas tenta chamar a atenção para o problema, afirmando que as autarquias não podem servir de tarefeiras ao Governo, mas a mensagem não passa, porque é imediatamente engolida pelo “problema” das ciclovias a que toda a gente parece mais interessada em dar destaque.

E, sim, eu nesta crónica estou a fazer o mesmo. Mas pareceu-me importante passar a mensagem de quem, de fora de Lisboa, tem toda a autoridade para dizer que Lisboa é do país, mas que as ciclovias e as avenidas que fecham aos domingos estão longe de ser um problema nacional.

Uma ciclovia lisboeta não pode valer mais tempo de discussão do que a cobertura em amianto de uma escola no concelho de Bragança. Uma avenida encerrada aos domingos na capital não pode gerar mais debate do que uma urgência pediátrica permanentemente encerrada no interior do país. Um limite de velocidade alterado numa cidade, mesmo que capital, não pode fazer rasgar mais vestes do que a falta de transportes públicos longe das grandes cidades onde ou vamos de carro ou vamos de carro.

Dir-me-ão alguns que os lisboetas escolhem os seus problemas e que, como são mais, são naturalmente mais ouvidos. Mas é que nem isso é verdade. Num país de cerca de 10 milhões de habitantes, Lisboa agrega cerca de meio milhão.

Há, portanto, 9,5 milhões de portugueses para quem as questiúnculas lisboetas são bairrismo, mas que continuam a vê-las dominar o debate público.

E, às vezes, no meio da irritação, dá vontade de entrar numa máquina do tempo e dizer a D. Afonso III que se deixe mas é estar sossegado. Olha tão bem que se está em Coimbra.»

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