9.6.22

Parem lá de gozar, se faz favor

 


«Às vezes, fico com a ideia de que os governantes gostam de gozar connosco. Voltei a ter essa sensação quando ouvi António Costa falar da necessidade de aumentar o peso dos salários no PIB e exortou as empresas a que fizessem um esforço coletivo nesse sentido. Pôs mesmo uma meta: até 2026, aumentar o salário médio em 20%. Neste caso, esta simples declaração é como um bom bolo de bolacha, tem várias camadas de gozo.

A primeira camada de gozo é a de fixar uma meta que em nada depende do Governo. Não é António Costa quem define quais os salários que as empresas pagam. Este discurso serve essencialmente para chamar a si mesmo o mérito de eventuais aumentos salariais que venham a ser concedidos no sector privado.

A segunda camada tem a ver com a justificação que o Governo deu, ainda não há muitas semanas, para não aumentar os funcionários públicos em mais do que 0,9%: não queria alimentar uma espiral inflacionista. Até parece que só os aumentos dos funcionários públicos é que causam inflação. Os aumentos dos salários no sector privado não.

(Se pensarmos com cuidado, percebemos que é precisamente o oposto. O perigo de os aumentos salariais alimentarem a inflação tem a ver com o facto de o empregador poder aumentar os preços transferindo o aumento de custos para o cliente. Esse perigo é muito maior no sector privado do que no público. Por exemplo, não é por se aumentarem os professores universitários que as propinas ficarão mais altas.)

A terceira camada é o próprio objetivo fixado e a forma de lá chegar. Diz António Costa que o peso dos salários no PIB é de 45% e quer que suba para 48%. Para tal ser possível é necessário que os salários aumentem mais do que o PIB. De acordo com as previsões da Comissão Europeia, o PIB português deverá crescer, em termos nominais, 8,8%. Na verdade, como a inflação prevista tem estado sempre a ser revista em alta, o provável é mesmo que o PIB nominal aumente ainda mais. (Note-se que o PIB representa o valor de todos os bens e serviços produzidos num ano, pelo que pode aumentar porque cresceu a produção e/ou porque os preços subiram; já quando falamos do PIB real, estamos a abstrair-nos dos efeitos inflacionistas.) Se as empresas seguirem o exemplo do Governo e aumentarem os salários em 1%, o que vai acontecer é que o peso dos salários no PIB, em vez de subir de 45% para 48%, desce para 42%. Se as empresas, em vez de fazerem o que António Costa diz, fizerem o que ele faz, o peso dos salários, em vez de aumentar três pontos percentuais, cairá em igual montante. Bem prega Frei Tomás…

Há uma quarta camada de gozo que é o de não dizer se o aumento de 20% é em termos reais ou nominais. Habituámo-nos de tal forma a não ter inflação que nos esquecemos que um aumento dos salários igual à taxa de inflação não é aumento nenhum. Se os preços em Portugal congelassem até ao fim do ano, a taxa de inflação de 2022 seria de 6,7%. Se traçar cenários otimistas e pessimistas para a inflação até 2026, concluirá que, até ao fim de 2026, os preços subirão entre 20% e 30%.

Portanto, se António Costa fala de um aumento nominal dos salários, 20% não é nada. Por trás de um número aparentemente ambicioso está, na verdade, uma ambição de descida dos salários reais. Faz lembrar quando, durante a campanha, o aumento de 0,9% dos salários da Função Pública foi apresentado como uma promessa eleitoralista. A promessa só era eleitoralista porque somos burros, dado que a inflação era bastante superior.

Se Costa se refere a aumentos reais dos salários, isso quer dizer que os salários têm de subir bastante acima da inflação. Admita, só para simplificar as contas, que a inflação em 2022 é de 7%, depois cai para 5% em 2023, 3% em 2024 e 2% em 2025 e 2026. Para que haja um aumento real de 20% dos salários, estes terão de crescer 3,85 pontos percentuais acima da inflação todos os anos. Só este ano teriam de subir quase 11%.

Há ainda uma quinta camada de gozo. O objetivo de aumentar os salários em 20% surge na mesma altura em que o Governo anuncia experiências-piloto para testar a semana dos quatro dias de trabalho. O Governo acena com menos um dia de trabalho por semana (ou seja, uma redução de 20% da carga de trabalho semanal) ao mesmo tempo que fixa como meta 20% de aumento salarial. Andam os economistas a discutir se será possível reduzir a semana de trabalho sem baixar salários e o Governo não só acha possível não baixar salários como até acha que dá para os aumentar em 20%. Se fizer as contas, verá que, para aumentar o salário em 20% ao mesmo tempo que reduz o horário noutros 20%, o salário por hora terá de aumentar 50%.

Fico na dúvida sobre se estão a gozar ou se não têm qualquer noção do que dizem.»

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