«Os católicos que conheço desejam o apuramento de toda a verdade (possível) em matéria de abusos sexuais no seio da Igreja Católica (IC). É-lhes insuportável imaginar o encobrimento de alegados abusos sexuais de menores em termos similares ao que se passou na Irlanda, nos Estados Unidos, no Brasil, em Espanha, na Bélgica ou em vários países da América do Sul. A realidade endémica é conhecida e relatórios como o Child Rights International Network explicam o que sabemos, isto é, há uma longa história de obstrução e não cooperação com a justiça por parte da IC com vista a proteger “os seus”, de culpabilização das vítimas, e de despreocupada transferência territorial dos agressores. O que já foi denunciado em Portugal numa Comissão, que é da Igreja, causa dor, mas não surpresa, exige empatia, foco nas vítimas e zero deferência.
A questão do privilégio da IC é uma questão funda. É um tema gigantesco e falar dele, e das suas consequências, não é querer abolir a instituição. Custa muito ler das regras “daquele tempo” e “deste tempo” “instituídas pela IC”, como se a IC vivesse à margem da lei, dando instruções internas, num ou noutro sentido. Em debates públicos, é comum ouvir — se que nada temos a ver com a organização interna de uma confissão religiosa. Mas podemos questionar o facto de haver uma confissão religiosa com enorme intervenção no espaço público que consegue uma espécie de lugar automático na construção dialética da Lei da República. Não está em causa a liberdade de expressão da IC ou de qualquer confissão religiosa, mas sim a deferência excessiva para com a IC num Estado laico, que é importante para explicar por que razão é tão difícil falar do que quer que seja que manche a imagem da IC ou por que razão em Portugal aceitámos que por aqui a história era diferente e nada havia a investigar.
Para a IC, o sexo é reservado a pessoas heterossexuais, depois de consumando o casamento para toda a vida e tem como finalidade primordial a procriação. A Igreja rejeita moralmente quem gosta de sexo porque sim, quem não quer procriar, essencialmente rejeita casais gays e lésbicas e vive isolada no Ocidente no papel institucional que reserva às mulheres.
Cada vez que o Parlamento laico, devedor apenas da Constituição da República, faz uma lei em matéria de igualdade e liberdade (casamento igualitário, adoção por casais do mesmo sexo, PMA para lésbicas, pessoas trans e, agora, eutanásia) não há um único debate sem padres e o número de audiências parlamentares a organizações católicas é gigantesco. Porquê? Em nome de quê? A Constituição consagra a separação das igrejas e do Estado, mas não houve um único tema dos aqui enunciados em que não tenha sido convocada a debater com representantes da Igreja que já explicaram ao povo, por exemplo, que há uma associação entre homossexuais e abuso de crianças, que as lésbicas são más mães, que não pode haver família sem pai e mãe, que a vida é dada por Deus e ninguém pode abdicar dela. Por que razão damos tanto espaço a uma Igreja que, na sua autonomia, rejeita em grande parte valores da República, mas depois dá o seu contributo precisamente sobre o que é, na verdade, pecado. A deferência leva a que debatamos direitos de minorias protegidas pela Constituição e repudiadas pela Igreja, porque isto é parte de um privilégio gigante da Igreja que é tido por normal.
Deixamos a Igreja em paz, mas a inversa nunca foi verdadeira.»
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