10.8.22

Um coração para Bolsonaro

 


[Esta ideia do coração de um rei ir em turismo histórico ao Brasil, em pleno século XXI, sempre me pareceu uma ideia peregrina – no sentido literal e também pejorativo do termo. E isto independentemente de aproveitamento político por Bolsonaro.] 

«O executivo da Câmara Municipal do Porto aprovou, por unanimidade, a transladação do coração de D. Pedro IV de Portugal (D. Pedro I do Brasil) para as comemorações do bicentenário da independência do Brasil, a pedido do governo brasileiro e com o entusiasmo do presidente da Câmara Municipal do Porto.

Trata-se, na minha opinião, de um grave erro. Poderia falar do insólito do ato: em pleno século XXI, exibir um coração em formol num evento público festivo, convida às mais arcaicas apropriações. Compreender-se-ia em tempos de antanho, quando tais rituais se aproximavam de um modo mórbido e heróico de celebrar feitos patrióticos. A exaltação dos mártires, o paroxismo do seu sacrifício, a exaltação nacionalista e guerreira – esperava-se que fosse pretérito e que se pensasse, atualmente, em formas imaginativas, dinâmicas e inclusivas de pensar o passado através do presente e dos novos desafios de paz, justiça social e defesa de direitos globais.

Nada disso: um coração em formol será transportado para gáudio imenso do governo de Bolsonaro que aqui encontra a ocasião de um festim necrófago galvanizador da sua base de apoio, fazendo, em plena pré-campanha eleitoral, como os ditadores romanos, a política de panem et circenses (pão e circo), impondo, como tem sido o seu mote, uma narrativa excludente, autocrata e racista de um Brasil puro, “das pessoas de bem” e dos “verdadeiros patriotas”. Com a ajudazinha do fervor monárquico e conservador de Rui Moreira e da cumplicidade e covardia política do executivo camarário!

Atente-se que o órgão será transportado pela Força Área Brasileira e será recebido no Palácio Planalto, em Brasília, no dia 22 de agosto, com “honras militares” devidas a um chefe de Estado, incluindo salvas de canhão e escolta pelos Dragões da Independência. A instrumentalização é total e descarada. Não se aceitam argumentos de ingenuidade ou inocência. Usa-se o morto (D. Pedro) para aclamar o vivo (Bolsonaro).

O governo Bolsonaro mata indígenas, tortura nas prisões, assassina com as milícias (é cada vez mais nítida a sua implicação na execução de Marielle Franco, a vereadora negra, favelada e lésbica que denunciava os negócios mafiosos do Rio de Janeiro), persegue homossexuais (em entrevista ao El País Bolsonaro chegou a dizer: “Só porque alguém gosta de dar o rabo dele passa a ser um semideus e não pode levar porrada?”), trouxe de novo a fome a milhões de brasileiros, destruiu manchas imensas da Amazónia, promoveu a mais desenfreada corrupção. Um governo canalha e de canalhas. É com estas pessoas e nestas circunstâncias concretas que a transladação deve ser analisada: é um inequívoco ato de apoio simbólico e político da autarquia do Porto ao atual governo brasileiro.

Imagino que D. Pedro, o liberal, se imaginasse esta desdita, apertasse com força o coração junto do peito, clamando para que o deixassem, para sempre, junto ao seu corpo. Só assim o morto descansaria em paz.»

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1 comments:

António Alves Barros Lopes disse...

Indecente, fazer viajar o coração de D. Pedro!