«O Verão está no fim e, com o Outono e o Inverno, a frente principal da guerra russo-ucraniana tenderá a deslocar-se para a Europa Ocidental. Tal é o desígnio de Vladimir Putin. Parece apostar numa guerra prolongada em que, à falta de sucessos militares na Ucrânia, o ressentimento social contra os efeitos das sanções desgaste e rompa a solidariedade europeia. O previsível enfraquecimento de Joe Biden após as eleições intercalares de Novembro completaria o quadro. A demissão do governo italiano de Mario Draghi foi um péssimo sinal.
A invasão da Ucrânia é desde o início uma fase do confronto global com o Ocidente. Tanto Moscovo como Pequim, por vias diferentes, querem rever a ordem político-económica mundial e forçar uma redistribuição de poderes e áreas de influência.
Se a economia russa continua a ser minada pelas sanções, o Kremlin tem a expectativa de que um efeito de boomerang produza divisões no Ocidente e dentro da NATO, graças às represálias russas nos mercados energéticos ou na ruptura dos abastecimentos de cereais.
A guerra começou com um duplo fiasco para Moscovo. O primeiro foi a surpresa ucraniana: a unidade nacional e uma insuspeita inteligência militar que forçou Moscovo a reduzir os objectivos e a rever várias vezes a sua estratégia. Em segundo lugar, revitalizou a NATO e provocou uma dura reacção contra Moscovo, quando Putin apostava numa reacção débil de um "Ocidente dividido e decadente".
Moscovo não desistiu da guerra. Parar a ofensiva sem conquistar todo o Donbass e outros objectivos no Sul seria o suicídio político de Putin, dizem analistas. Por outro lado, ambas as partes têm objectivos absolutos e inegociáveis, o que torna longínquo um cenário de negociações.
Depois de Draghi
A demissão de Draghi e as eleições de 25 de Setembro ameaçam enfraquecer a resposta italiana perante a guerra na Ucrânia, assim como privar a Europa de uma liderança eficaz perante o desafio russo. Ou seja, não só enfraquecer (ou até virar) a atitude italiana como a unidade da acção europeia. Se os seus sucessores falharem, é toda a Europa que será tocada.
"Draghi apoiou aberta e concretamente a Ucrânia, promoveu a viagem com Macron e Scholz, elaborou com a secretária do Tesouro americana, Janet Yellen, as sanções e guiou a comunidade ocidental nesta situação", frisa o economista alemão Guntram Wolff, ex-presidente do think tank Bruegel, de Bruxelas.
Putin tem os olhos postos na Itália. "Espera que saiam das eleições dois cenários", escreve o politólogo Angelo Panebianco. "Ou uma Itália tornada instável ou a vitória de uma coligação em que têm peso e responsabilidades partidos que são seus amigos ou, pelo menos, não hostis. Ambas as soluções seriam agradáveis para a Rússia."
Se Giorgia Meloni, líder dos Irmãos de Itália (FdI), se proclama atlantista e defende a manutenção das sanções e a ajuda militar a Kiev, já Berlusconi é um "velho amigo" de Putin, e Matteo Salvini, da Liga, tem sido um fiel cúmplice do Presidente russo. Foi forçado, pelo seu partido, a anular um recente projecto de viagem a Moscovo.
Berlusconi procura manter uma certa ambiguidade. Salvini ataca as sanções que diz inúteis e apenas sacrificam os italianos. Enquanto inesperado "pacifista", tal como os restos do Movimento 5 Estrelas (M5S), opõe-se terminantemente ao fornecimento de armas a Kiev, decidido por Draghi.
A subida dos preços da energia, apesar de a resposta italiana ter sido das mais eficazes, tende a enfraquecer a quase unânime reacção contra a invasão da Ucrânia. Salvini não hesitará em explorar todos os descontentamentos.
Tudo isto pode ser resumido no título de um artigo de uma antiga governante americana na Foreign Policy: "As eleições antecipadas italianas podem oferecer a Putin a vitória de que ele precisa."
Também as eleições legislativas francesas complicaram a situação europeia. Macron perdeu a maioria na Assembleia Nacional. As posições pró-russas saíram reforçadas, à direita e à esquerda. Marine Le Pen tem sido prudente, mas já apontou a ineficácia das sanções a Moscovo. À esquerda, uma grande parte da coligação NUPES, sobretudo o núcleo duro da França Insubmissa, de Jean-Luc Mélenchon, são hostis às sanções e à NATO.
Para lá do racionamento energético, Putin espera ainda uma reacção aos custos multimilionários do apoio militar e da reconstrução da Ucrânia. Para ele, a Itália (sem Draghi) e a Alemanha serão os fracos da aliança ocidental. A pressão de Moscovo vai subir. Cabe aos ocidentais prevenir a manobra de Putin e reformular a sua estratégia.
Está no horizonte outro momento marcante: as eleições americanas de Novembro. Há analistas que admitem que Putin esteja à espera do enfraquecimento de Biden para abrir negociações.
Caro leitor: não quero ser pessimista, mas apenas chamar a atenção para a nossa "batalha de Inverno".»
Jorge Almeida Fernandes
Newsletter do Público, 11.08.2022
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