14.9.22

Do bicentário do Brasil e da tentativa de apagar a presença de África nas américas

 


«O tratamento mediático mainstream tanto no Brasil como em Portugal, seu antigo colonizador, do bicentário da independência do maior país da América Latina foi, de um modo geral, uma demonstração de uma irrefutável verdade histórica: as elites ocidentalizadas (o adjetivo é político-cultural) globalmente hegemónicas são profundamente racistas e eurocêntricas. Não nos deve espantar, pois, que ajam como se a importância de África e dos africanos para a construção do mundo moderno fosse inexistente.

Não me refiro ao pedido das autoridades brasileiras para que Portugal enviasse, a título de "empréstimo" (?) o coração de D. Pedro II para, supostamente, ser venerado pelos brasileiros (será que eles, a braços com uma profunda crise civilizacional instaurada pelo bolsonarismo e às vésperas de uma eleição decisiva, que pode interrompe-la ou mantê-la, o fizeram mesmo?). De igual modo, não comentarei os vários textos que li na imprensa portuguesa enaltecendo, com um saudosismo bacoco, a "obra" do Portugal colonial no Brasil.

A questão de fundo é a omissão deliberada do seguinte facto crucial: o papel determinante do trabalho de milhões de africanos escravizados na construção do Brasil, dos quais, lembro, cerca de 80% eram provenientes de Angola. De igual modo, é impossível deixar de mencionar os milhões de cadáveres dos povos originários locais e dos africanos levados à força para o território brasileiro. A "obra" colonial de Portugal no Brasil - assente, diga-se, numa invenção criada pelos portugueses em São Tomé e Príncipe e que se espalharia pelo mundo de então, nomeadamente nas américas, a "tecnologia da plantação" - é, pois, tributária do sangue de todos esses homens.

O facto é que, pesem embora as deliberadas e estruturais (o que é a mesma coisa) políticas de destruição dos brasileiros de origem negro-africana, os mesmos continuam a ser até hoje a maioria demográfica do país. Além do seu contributo económico à construção do Brasil, o seu papel para a formulação da cultura e da identidade brasileiras é absolutamente incontornável. As principais marcas do Brasil ainda hoje são negras: o samba, o Carnaval e Pelé. Além disso, e graças principalmente ao trabalho das novas gerações de intelectuais afro-brasileiros surgidos como resultado das políticas públicas dos governos Lula, começam a ser resgatadas as contribuições de várias outras figuras negras para a própria independência, bem como para a construção do Brasil, em diferentes áreas.

Essas contribuições foram liminarmente ignoradas, de um modo geral, quer nas comemorações oficiais do bicentenário do Brasil quer nas repercussões do assunto na imprensa dominante, no país e fora dele. Por isso, o jornalista, escritor e produtor cultural Tom Farias recordou, em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, que a ideia de comemorar os 200 anos de vida do Brasil como país independente "não se coaduna com a ideia de liberdade de homens e mulheres negros e negras - de ontem e de hoje". O título do artigo antecipa o seu conteúdo: - "Uma independência sem negros não vale a pena".

A maka é que as elites historicamente hegemónicas em todos os países da América Latina são descendentes dos antigos colonizadores portugueses e espanhóis, sendo responsáveis pela reprodução, após as respetivas independências, não apenas da ideologia, mas igualmente das mesmas estruturas de dominação herdadas do passado. Lembro-me, a propósito, de um conhecido meu colombiano a quem um dia perguntei pela situação dos negros no seu país, ao que ele me respondeu que na Colômbia não havia negros. Confesso que, por instantes, fiquei sem saber como reagir, tendo sido acometido de sentimentos contraditórios.

A verdade é que a contribuição negro-africana para a constituição de novas nações no continente americano e no Caribe, para a consolidação e universalização do capitalismo e para a edificação da modernidade não carece de demonstração. Apenas de honestidade para reconhecê-lo e valorizá-lo devidamente.»

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