«Até quem não é de intrigas e quer a paz no mundo, por mais plácida que seja a pessoa, não pode deixar de se indignar com a vergonhosa atitude da Dinamarca. Bem me dizem: aquele país não é de confiança, já há mais de 400 anos que sabemos das sinistras manobras na corte, o tio de Hamlet matou o irmão para casar com a mãe do nosso herói, ainda por cima andam por lá fantasmas, os conselheiros não aconselham e tudo acaba em desgraça, a coisa só se pode ter refinado entretanto, tiveram tanto tempo para agravar a sua malícia, é de temer o pior. Mas, mesmo assim, quem estava preparado para esta afronta monumental que agora nos impingem? Ninguém, isto é inimaginável.
Começaram de mansinho, só pediam que os jogadores usassem uma camisola alusiva aos direitos humanos. Matreiros, acharam que a Fifa ia cair na esparrela e, claro, receberam a chapada de uma digna e autorizada recusa. Os rapazes têm que ir de farda e continência. E insistiram, não perceberam o recado, vieram pé ante pé com mais exigências, que isto das mulheres, aquilo dos trabalhadores mortos nos escombros dos estádios, imaginem que até perguntaram pelas leis que proíbem que se seja LGBT, os dinamarqueses não se calaram. Incomodaram, isso sim. Até Macron, que gosta da pose como se sabe, acabou por ter que dizer que só vai de meia-final para cima. Outros países, cujos governos são azucrinados por opiniões públicas com manias, lá tiveram que desgraduar a visita para um qualquer Secretário de Estado. Imaginem que até as outras realezas se envergonharam e só mesmo Sua Majestade do Reino de Espanha por lá andará e deve ser visita curta, não lhe vá aparecer ao lado a Majestade Emérita que anda pelas Arábias. Agora, acham que a Dinamarca se ficou? Nada, agravou a sua insurrecta agressão ao espírito pacificador e embelezador do futebol mundial e, vai daí, anunciou que nenhum ministro ou membro do governo, nem sequer o embaixador, se fariam representar no espetáculo.
Tudo isto é, evidentemente, um truque para evitar que façamos a única pergunta que verdadeiramente interessa: e a Rainha, Sua Majestade Margarida II, como é que explica não ir ao estádio? Não sabe da bola, com regras tão simples, onze de um lado, onze do outro, uma bola por ali e uns paus com umas redes nas pontas do campo? Sabe mas não gosta? E a dignidade nacional? E o orgulho pátrio? E o espírito desportivo? Tenho para mim que a rainha, quieta lá no seu palácio, deve ter sido quem conspirou toda esta marosca.
Por isto, a atitude dos nossos Grandes é um alívio. Ao princípio vão à vez, não perdem um único jogo, primeiro o Presidente, depois o Número 2, depois o Primeiro, varrem a temporada de grupos e depois, assim espero, acotovelar-se-ão todos em cada um dos jogos seguintes que, queira o Altíssimo e o senhor engenheiro, venham a ser disputados pelos nossos rapazes. Vão ser filmados na bancada, mas sempre modestamente, o que eles querem mesmo é ir ao balneário cantar o hino nacional e deixar umas palavras inspiradoras para os alas e para os centrais, umas táticas que eles lá pensaram, não tenham dúvida de que é essa firmeza que vai lançar os heróis para a arena, vão como guerreiros depois de ouvirem as autoridades. Tenham por boa conta o que vos digo, cada golo que marcarem, e vão ser chusmas deles, vai ter a marca de Marcelo, de Augusto e de António. Nenhum outro país, ao que sei, é tão solidário com os seus jogadores, nenhuma autoridade, e não faltam por aí, tem tanto desvelo por aquele campeonato, deixem-se disso de milhares de mortos, de mulheres caladas, de imigrantes explorados, de gays e lésbicas condenados, que ninharias comparado com a grandeza da bola que desliza no relvado! Que comece o espetáculo, que os principais figurantes estão prontos e de malas aviadas.»
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1 comments:
Já agora e a propósito, o nosso Presidente fez saber que iria apenas ver um jogo de futebol. Afinal, segundo noticia o JN de hoje, sua excelência (com letra pequenina) irá participar numa coisa qualquer sobre educação/ensino e prometeu que falaria de direitos humanos.
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